domingo, 6 de dezembro de 2020

[Novel] Xingpan Chongqi - Capítulo 03

 


Tradução: Foxita.
Revisão colaborativa: Sr. Raposo.

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Capítulo 03 - A Queda do Patriarcado

Depois de ingressar na cela da prisão, A-Ka continuou atordoado por um tempo. Ele não conseguia entender por qual motivo havia se exposto naquelas circunstâncias e confessado que era a pessoa por quem Heishi procurava.
Ele abraçou os próprios joelhos e sentou-se em um canto, pensando incessantemente: o que vai ser de mim?
Humanos eram animais racionais. Pelo seu próprio bem, ele há muito tempo tinha decorado vários artigos da lei. Enquanto A-Ka pensava e repensava no assunto, ele sentiu que o problema atual não necessariamente culminaria em sua execução, afinal a lei não dizia como alguém que trazia consigo um humano deveria ser punido.
O único crime que poderiam lhe imputar seria o de cruzar a fronteira entre os mundos. No entanto, A-Ka sempre foi bastante cuidadoso para não deixar quaisquer vestígios pelas câmeras de vigilância. Contanto que os robôs encarregados de cumprir a lei não pudessem atestar com certeza que ele secretamente havia saído do Formigueiro, ele seria absolvido.
A questão envolvendo Heishi era ainda mais fácil de ser resolvida. Como ele não tinha identidade e não era um fugitivo de outras seções, era bastante provável que ele e A-Ka fossem inocentados. Para tanto, era crucial que Heishi não revelasse a verdade aos robôs, ou seja, que A-Ka já havia saído escondido anteriormente.
No entanto, tão logo A-Ka fosse processado pelo clone, ele acabaria preso e seria imediatamente executado pelo crime de furto.
A-Ka estava muito satisfeito por inconscientemente ter tomado a decisão correta. À primeira vista, parecia que sua decisão tinha sido responsável por salvar Heishi, mas na realidade ela acabou salvando sua própria vida.
Com isso em mente, A-Ka deu uma olhada em Heishi, que estava sentado de frente para ele, imaginando uma maneira de lhe dizer o que estava pensando sem que fosse notado pelas câmeras de vigilância. Assim que levantou a cabeça, notou que Heishi também o encarava. Eles estavam separados por duas celas, cujas barras eram feitas de feixes de laser horizontais e verticais que se cruzavam.
“Heishi,” falou A-Ka.
Heishi olhou para ele.
A-Ka: “O que exatamente você veio fazer aqui?”
Heishi respondeu, “Não é da sua conta.”
A-Ka: “Seu...”
A-Ka não tinha como lidar com Heishi, que apenas olhava ao redor, com os olhos cheios de suspeitas. Quando ele estava prestes a estender a mão e tocar nas barras de laser, A-Ka imediatamente falou apreensivo, “Não encoste nisso, não toque em nada!”
Heishi falou friamente, “Cala a boca!”
A-Ka simplesmente respondeu, “Então vá em frente, toque nela. Não me culpe se você morrer.”
Heishi ficou em silêncio por um bom tempo e finalmente decidiu não testar e se colocar em perigo.
“Não diga nada.” No fim, foi tudo que A-Ka pôde dizer.
Heishi permaneceu ali parado em silêncio observando A-Ka. Em pensamento, A-Ka refletia repetidamente: como explicar isso para Heishi? Aquele homem já adulto que ele tinha resgatado e trazido consigo parecia ser uma espécie de lunático.
Ele não sabia de nada. Quando fosse interrogado, ele provavelmente não mentiria. O mais perigoso era que Heishi não tinha qualquer noção da atual situação, da Cidade das Máquinas, ou do status dos humanos na sociedade e sua relação com os robôs. A-Ka sentia apenas que a situação era bastante espinhosa.
Quando A-Ka levantou a cabeça, percebeu que Heishi o observava.
"Escuta, Heishi,” falou A-Ka. Ele percebeu que talvez houvesse a necessidade de demonstrar a realidade de como tudo ao redor deles era perigoso. Assim, ele tirou de dentro do bolso uma pequena chave de fenda e a jogou em direção às barras de laser. Com um zumbido, a chave de fenda de plástico foi cortada em dois pedaços, que foram ao chão.
Heishi encarou a chave de fenda.
“Não diga nada,” falou A-Ka. “Não importa o que te perguntarem, não diga nada, ou vai acabar morto. Primeiro, me diga a verdade, por que veio aqui?”
Heishi respondeu, “Nenhum motivo especial. Eu preciso encontrar uma saída, você pode ficar aqui e continuar esperando.”
A-Ka cuspiu entredentes, “Eu te salvei duas vezes, Heishi! É assim que você trata a pessoa que salvou sua vida?”
Do lado de fora, veio um barulho e os dois se sentaram alertas nas próprias celas. A-Ka não conseguia parar de medir Heishi, seu pensamento vagando entre ele e a revolução dos clones. Ele fechou os olhos e de repente ouviu um estrondo abafado vindo de longe; as paredes tremeram levemente.
Logo em seguida, toda a área da prisão foi tomada pela escuridão e as barras de laser se apagaram.
De longe, veio o som de tiros.
A-Ka imediatamente se pôs de pé ― a fonte de energia fora cortada! O que estava acontecendo? De acordo com a informação do chip, a revolução dos clones não deveria começar apenas no dia vinte e sete?
Os lasers tremeluziram e iluminaram suas faces. As circunstâncias eram estranhas. Após mais alguns segundos, todas as luzes sumiram.
A-Ka correu para fora da cela, tropeçou e caiu nos braços de alguém. Ele foi segurado firmemente por um braço forte e seu coração pulou de susto.
A-Ka falou, “Me solta!”
A pessoa resmungou friamente; era a voz de Heishi, que o empurrou de lado. A-Ka pensou consigo mesmo, Realmente, já chega… Assim que as celas se abriram, todos tentavam escapar. Naquele breu, era impossível saber por onde ir, então A-Ka podia apenas tentar se lembrar do caminho que tomaram para chegar até ali e gritou, “Por aqui, Heishi! Venha comigo!”
Ele se virou e correu em direção à saída da esquerda, mas quando estava quase chegando, ouviu o som de lagartas mecânicas[1], como se vários robôs sentinelas estivessem se aproximando. Ele inconscientemente virou o corpo e correu de volta em direção aos fundos da cela.
A-Ka: “É perigoso! Volte!”
Ele correu em direção ao final do corredor, passando por fileiras e mais fileiras de celas. Assim que os lasers sumiram, todos os humanos ficaram de prontidão e a prisão se encheu de gritos caóticos e de um grande empurra-empurra.  A-Ka foi empurrado e jogado para longe, cambaleando até se apoiar em alguém.
“Heishi! Heishi!” A-Ka gritou ansioso, mas ninguém respondeu. Ele provavelmente tinha fugido sozinho e se perdido. No entanto, A-Ka não podia gastar mais nenhum minuto procurando por ele em meio à escuridão. Uma confusão de vozes soou.
“Estamos livres!”
“Saiam, rápido!”
“Tem algo de errado com o sistema de energia!”
“Cuidado! Se abaixem!”
Naquele instante, A-Ka sentiu um corpo forte derrubá-lo no chão. Eles rolaram pelo chão enquanto lasers vinham de todas as direções. Os guardas-robôs abriram a principal porta que levava ao corredor e feixes de luz zuniram enquanto gritos de dor e sangue recém-derramado encheram o ar. O coração de A-Ka pareceu parar naquele instante. Ele sentiu um líquido viscoso em sua mão, sua mente estava confusa.
“Aqui,” a voz de Heishi era fria e calma como sempre. Tão fria e calma que parecia irreal. A-Ka sentiu apenas seu corpo ser levantado quando eles saltaram. Ele foi puxado por Heishi para algum lugar, seguido por uma sequência de quedas. A entrada principal se fechou de repente. Eles tinham adentrado o túnel exterior do complexo penitenciário.
A-Ka não conseguia ver nada, mas tateou até esbarrar em uma tampa de bueiro derrubada, na qual ele bateu algumas vezes perguntando, “Heishi, você ainda está aí?”
Não houve resposta; os arredores estavam em completo silêncio. Logo em seguida, houve um estrondo ensurdecedor e a tampa de bueiro à frente dele explodiu em pedaços. A-Ka levou um grande susto. Sua mão roçou em uma lanterna de tom azul e ele a acendeu, vendo que a mão de Heishi estava coberta de sangue. Se não fosse pelo sangue, ele teria se perguntado se Heishi era um robô.
“Você é tão forte,” falou A-Ka com o coração ainda tomado por um pouco de medo. “Não tá doendo?”
Ele examinou a mão de Heishi. Havia um corte aberto nas costas da mão.
Heishi não respondeu e, ao invés disso, falou, “Vou indo, você se cuida.”
Heishi se virou e partiu; a raiva de A-Ka se foi completamente. Ele pôde apenas segurar aquela luz fria enquanto seguia em frente.
Em um piscar de olhos, Heishi já tinha desaparecido sabe-se lá para onde. A-Ka usou a luz para iluminar o caminho à sua frente e ansiosa, mas cautelosamente, começou a procurar por túneis pelos quais pudesse seguir viagem. Ele estava com um medo terrível de se deparar com robôs, mas depois de circular por um tempo, descobriu que tinha apenas uma pessoa à sua frente e uma vez mais ele deu de cara com Heishi.
“Vamos juntos,” falou A-Ka. “Você não conhece essas passagens.”
Heishi não respondeu, tampouco passou a acompanhar A-Ka e, em vez disso, continuou a caminhar em direção ao fundo do túnel. Ele parou onde estava, à frente de A-Ka, e se virou para observá-lo. Ele virou a cabeça novamente; uma mão aparentava segurar algo que não existia, como se segurasse sua própria luz azul. A-Ka vagamente pareceu perceber algo: Heishi estava aprendendo.
Ele supôs que Heishi o imitava em uma tentativa de compreender seus próprios movimentos. Em outras palavras, fora o fato de saber falar, havia uma parte das memórias de Heishi sobre movimentos e pensamentos que estava completamente vazia, como se fosse uma criança pequena. No entanto, neste exato momento ele não podia se dar ao luxo de perguntar a Heishi sobre isso; era mais importante proteger a própria vida.
Ao alcançar Heishi, ele pensava em uma maneira de lhe explicar a situação.
A-Ka: “Esse lugar é chamado de Formigueiro, é aqui que os humanos vivem. Você é um membro da espécie humana.”
Heishi ainda carregava uma expressão de indiferença.
A-Ka: “Agora, nós precisamos pensar em um jeito de fugir daqui.”
Heishi não teve qualquer reação e A-Ka prosseguiu, “A luz pode nos ajudar a ver o caminho claramente. Esse tipo de luz geralmente é de uso exclusivo dos clones, que não são a mesma coisa que robôs. Robôs têm sensores infravermelhos e conseguem ver pessoas mesmo na escuridão. Então...”
“Você é muito barulhento,” falou Heishi.
A-Ka: “...”
A-Ka finalmente explodiu e rugiu com raiva, “Que azar ter te conhecido!”
Heishi se virou, olhando ameaçadoramente para A-Ka. Naquele momento, A-Ka recuou e não se atreveu a gritar com ele novamente.
Heishi falou com frieza, “O que você disse?”
A-Ka não ousou dizer mais nada e felizmente Heishi não se aproximou para bater nele. Ele apenas se virou e continuou a seguir em frente.
“Lá fora, tem mais pessoas lutando na rebelião." A-Ka seguiu atrás de Heishi depois de concluir que agora não era momento para discussões. Ele continuou, "Então nós podemos aproveitar o caos para fugir.”
Heishi assentiu superficialmente com um "hum" e depois inclinou a cabeça como se estivesse distinguindo sons na escuridão. A-Ka sabia que o outro o havia compreendido totalmente, então seguiu em frente.
A luz fria iluminou o túnel, revelando as seções do caminho à frente: um grande corredor, um túnel, um grande corredor, um túnel; a maior parte de suas portas de aço que funcionavam como divisórias estavam abertas. De vez em quando, haveria uma porta de aço entreaberta, provavelmente travada naquela posição por causa da falha no sistema de energia. Por várias vezes, A-Ka iluminou as paredes, tentando encontrar um mapa dos túneis, mas ele aos poucos entendeu que era uma tentativa vã.
Somente a região do Formigueiro possuía um mapa. Quando robôs e clones saíam de lá, tinham sistema de navegação e, portanto, não precisavam de mapas. Como estavam vendados quando foram levados até lá, A-Ka também não sabia onde estava e podia apenas seguir às cegas atrás de Heishi conforme avançavam.
Depois que Heishi apareceu, A-Ka de repente sentiu que sua própria sorte tinha se tornado muito boa, como se o outro tivesse lhe trazido mudanças e uma deusa da sorte. Se não fosse por Heishi, havia uma grande probabilidade de que A-Ka tivesse sido levado pelos clones e executado.  No mais, estava completamente fora do controle de A-ka se a perda do chip fora ou não a razão pela qual os androides começaram a luta antes da data prevista.
Depois de andar sem saber por quanto tempo, o corpo de A-Ka gradualmente ficou incapaz de sustentá-lo e ele disse: "Espere por mim, preciso descansar um pouco.”
Heishi olhou impaciente para A-Ka e finalmente disse, “Vou indo.”
A-Ka falou, “Pra onde você vai?”
Heishi respondeu, “Não é da sua conta.”
A-Ka não fazia ideia do que fazer com Heishi. Ele parecia guardar rancor pelas palavras trocadas quando acordou depois de ter sido resgatado. Aquela primeira conversa realmente foi infeliz, mas ela apenas aconteceu por causa da hostilidade demonstrada por Heishi quando o conheceu.
A-Ka disse, “Espere por mim, você não consegue sobreviver sozinho.”
Os passos de Heishi lentamente despareceram conforme ele deixou A-Ka para trás e foi embora.
A-Ka virou a cabeça de lado e encostou a orelha contra a parede do túnel, mas não ouviu nada. À frente deles, havia um longo túnel usado para transportar suprimentos para necessidades básicas. Havia vários túneis assim por todo o Formigueiro. Eles se cruzavam, indo e voltando sob a terra, transportando mercadorias que os humanos precisavam. Encontrar os túneis era basicamente o mesmo que ganhar acesso à rede de caminhos.
A-Ka descansou um pouco e uma vez mais, lentamente, começou a seguir os trilhos. Ele não esperava se encontrar novamente com Heishi.
Não havia saída à frente. Naquele momento, Heishi inclinava a cabeça para analisar algo que parecia ser um quadro elétrico.
A-Ka falou, "Puxe o portão externo. Ele é ativado por magnetismo e não é afetado pela falta de energia elétrica.”
Heishi puxou o portão e houve um estrondoso barulho de aço raspando quando uma porta embutida no chão se abriu.
“Muito bem," falou A-Ka. “Se você tivesse ido sozinho, não teria conseguido achar a saída.”
Heishi não respondeu e A-Ka desceu pelos trilhos. A ferrovia era tão longa que não se enxergava seu fim. Ele caminhou na frente e Heishi seguiu atrás. De longe, veio o som fraco de uma explosão.
A-Ka não sabia se o plano dos clones tinha sido colocado em prática e ficou um pouco apreensivo. Se ele não conseguisse fugir a tempo e os clones falhassem, o que ele faria então? Ele continuou a caminhar e de repente Heishi o puxou, fazendo-o parar ― os dois quase tinham trombado de cara com um carrinho de mina.
O caminho estava bloqueado.
“E agora?” Perguntou A-Ka.
Heishi se adiantou e empurrou o carrinho com as duas mãos.
Aquele carrinho pesava pelo menos uma tonelada e Heishi arqueou o corpo, usando toda sua força para continuar a empurrá-lo. A-Ka fez menção de pará-lo, mas quando viu que o carrinho tinha começado a se mover lentamente, ele também arqueou o corpo e se juntou a Heishi, empurrando aquele objeto que mais parecia uma parede de aço, ofegando pesadamente ao se moverem adiante pelos trilhos.
Depois de um tempo, eles finalmente alcançaram uma curva no túnel. Os trilhos, que se estendiam como finas teias de aranha, se reuniam em um grande corredor com buracos em todas as paredes. Heishi escutou atentamente por um tempo e escolheu um caminho.
A-Ka ficou parado na entrada de uma das cavernas, ouvindo gemidos que vinham de dentro. Aquela seria a saída?
As imediações começaram lentamente a esfriar. O sistema de ar condicionado, que antes funcionava, foi temporariamente interrompido devido à falta de energia.
“O que foi?" Heishi perguntou.
“Está frio,” respondeu A-Ka.
Heishi obviamente não entendia o significado de “frio”, então se afastou insensivelmente.
A-Ka sentia-se extremamente deprimido e não pôde evitar desabafar em seu coração, então por que perguntou?... Ele tremia um pouco e sua atenção se voltou para as roupas que tinha dado para Heishi, que as usou desde então. A-Ka pensou que, por mais que corpo de Heishi fosse forte, era melhor encontrar outras roupas para ele usar... do contrário, seria ainda mais problemático se ele ficasse doente. Enquanto caminhavam pelos trilhos daquele túnel tão escuro em que não se via um palmo à frente do nariz, ele tropeçou em algo.
Os corpos de vários clones jaziam nos trilhos. De longe, veio o som de alguém gemendo, “Me ajude... me ajude...”
A-Ka respirou fundo e seu coração começou a bater violentamente.
“De que pelotão você é...” o clone sobrevivente virou a cabeça e viu A-Ka e Heishi.
Sua cabeça tinha sido destruída; um olho projetava-se para fora da órbita e seu abdômen foi atravessado por uma bala. Ao ver que A-Ka era humano, ele disse, “Humanos.”
A mão dele se ergueu tremendo, como se quisesse agarrar A-Ka, mas Heishi o puxou para trás, afastando-o um pouco.
“O que aconteceu?” A-Ka estava desesperado para saber se eles tinham ganhado ou perdido a batalha.
“Humano,” o clone falou fracamente. “Você pode ir.” Os olhos dele se fecharam.
A-Ka levantou a luz fria e iluminou os arredores. Parecia que aquele lugar tinha sido palco de uma árdua batalha. Em frente, estavam vários guardas-robôs destruídos, cujos circuitos falhavam e faiscavam.
A-Ka tirou as roupas do corpo do clone e as deu para Heishi, que desamarrou as próprias roupas e apanhou o colete. Quando o colocou, ele olhou para o clone, e A-Ka soube que ele queria perguntar algo. Como esperado, Heishi abriu a boca no momento seguinte.
“Por que todas essas pessoas têm a mesma aparência?” Heishi estava muito desconfiado e confuso com aquela cena.
“Eles são clones,” falou A-Ka. “Eles foram criados pelo regime das máquinas para servi-las e serem seus mensageiros.”
“E você?” perguntou Heishi novamente.
A-Ka respondeu, “Sou humano. Na Cidade das Máquinas, nossa classe é inferior até mesmo aos clones.”
“Classe?” Heishi ouviu uma palavra com a qual não estava familiarizado.
A-Ka e Heishi se vestiram apropriadamente e, conforme caminhavam, ele explicava distraidamente o conceito de classes, a Cidade das Máquinas, bem como a organização da sociedade humana. Ele acrescentou como os clones cumpriam as ordens dos robôs e os ajudavam a controlar os humanos. Os clones também eram responsáveis por completar algumas tarefas que as formas de vida de aço eram incapazes de realizar sozinhas.
Os clones eram controlados por uma operação unificada. Não temiam doenças ou a morte. Caso seus órgãos fossem danificados, eles naturalmente conseguiriam trocá-los. O tipo sanguíneo dos clones era o mesmo e seus órgãos podiam ser substituídos à vontade. Assim, a subsistência dos clones era muito mais simples que a dos humanos. Eles eram exatamente como robôs vivos.
“Como eles surgiram?” Heishi fez sua segunda pergunta.
A-Ka respondeu, “Eles foram feitos pelos humanos.”
“Durante a Idade de Ouro, os humanos conquistaram o céu e a terra. Não havia nada que não pudessem fazer,” A-Ka explicou para Heishi. “O exército de robôs comandados por ‘Pai’ e os clones são criações humanas. Criações feitas especialmente para servir aos humanos. Mas os clones traíram a humanidade, e depois 'Pai' também traiu. E quando os robôs assumiram o controle sobre a linha de produção de clones, eles finalmente os colocaram sob controle das máquinas.”
“E os humanos?” perguntou Heishi mais uma vez. “Humanos como eu.”
“Alguns ficaram aqui e se tornaram escravos,” falou A-Ka. “Eu sou um deles. Quanto ao resto, alguns fugiram, e ouvi dizer que criaram um novo país do outro lado do Grande Oceano.”
Heishi assentiu e o coração de A-Ka deu um pulo ao pensar em quando Heishi foi levado até a costa. Será que ele teria vindo do continente longínquo? Quanto ao País Ideal, do outro lado do Grande Oceano, os humanos tinham ouvido todos os tipos de rumor a seu respeito. Alguns diziam que o País Ideal era um reino de magia, onde poderiam chamar os ventos e invocar as chuvas, controlar as forças da natureza e usar as habilidades mentais para mudar o mundo. Outros diziam que todos os fugitivos tinham morrido e o chamado País Ideal era apenas uma nebulosa e fantasiosa lenda.
Havia aqueles que acreditavam que os exércitos do País Ideal um dia chegariam na Cidade das Máquinas, destruiriam Pai ― esse grande demônio que eles próprios criaram anos atrás ―, e libertariam todos os humanos.
Mas em vez disso, foram os clones da Cidade das Máquinas que lideraram o início da revolução.
Quando Heishi finalmente terminou de ouvir a explicação de A-Ka, seu semblante ficou ainda mais frio. A-Ka de repente pensou em algo e supôs, “Você veio do País Ideal?”
Em sua jornada, por diversas vezes, A-Ka pensou sobre as origens de Heishi. Talvez ele fosse um sobrevivente sortudo de um navio naufragado; ou talvez, três mil anos atrás, ele veio até o Terceiro Continente para cumprir uma missão. Mas agora Heishi já havia se esquecido completamente e tudo que A-Ka podia fazer era esperar que um dia no futuro ele se lembrasse.
Depois que Heishi e A-Ka se conheceram, além de fazer perguntas, ele passava a maior parte de seu tempo mergulhado em silêncio, observando o mundo exterior. A-Ka não queria atrapalhar e apenas lhe jogou um par de botas para que o outro as calçasse.
O ar ficava cada vez mais frio e a respiração de A-Ka se transformou em fumaça branca. Os dois estavam envoltos em grossas camadas de roupas. Conforme passavam pelo cenário posterior a uma grande batalha, até onde os olhos podiam ver, o chão estava coberto de cadáveres de clones e dos destroços de robôs. Este lugar claramente tinha experimentado uma grande e sangrenta batalha.
Quanto mais avançavam, mais corpos viam, até que avistaram uma densa pilha de cadáveres do lado de fora de uma porta. A-Ka percebeu que este poderia ser um lugar bem importante. No entanto, este era apenas um corredor comum, no qual havia uma porta sem identificação ou placas.
“Por que eles morreriam aqui?” A-Ka perguntou intrigado. Este corredor tinha cerca de cem cadáveres e carcaças, como se estivessem protegendo algo importante. Mas, ao final, havia apenas esta porta.
Ao se virar, ele notou que não havia caminho de volta, então lhes restava apenas seguir em frente teimosamente. A-Ka de repente pensou, será que ali dentro poderia estar a Câmara de Controle Central que armazenava o Pai? Ele logo descartou aquela hipótese, pois esta era apenas uma área onde se cruzavam vários trilhos do sistema de transporte de mercadorias. Não havia como Pai estar trancado neste remoto espaço subterrâneo.
Heishi afastou os cadáveres e as carcaças dos robôs destruídos, revelando a porta por inteiro. Ele usou o ombro para empurrá-la, mas ela não se mexeu.  Após um momento de contemplação, A-Ka disse, “Me deixa tentar.” Ele abriu o painel de controle ao lado da porta, dentro do qual havia diversas fechaduras que exigiam senhas extremamente complicadas.
Sem querer, ele notou que o clone que jazia mais próximo da porta segurava firmemente um cartão nas mãos. Ele então entendeu que os insurgentes estavam a apenas meio passo de entrar por aquela porta.
O que exatamente estava atrás dela? A curiosidade de A-Ka era praticamente incontrolável. Ele usou o cartão de segurança, que tinha sua própria fonte de energia externa, e foi recebido por nada além de escuridão. A luz fria iluminou seu rosto e o de Heishi, que viam câmaras de nutrição vazias por todo o cômodo. No meio, havia um humano moribundo sentado.
Um homem velho.
“Você finalmente chegou...” o idoso falou.
A voz repentina assustou A-Ka.
“Você... quem é você?” A-Ka rapidamente deu um passo à frente e examinou a condição do velho. Ele descobriu que havia tubos de várias cores saindo dele e eram esses tubos que ainda o mantinham vivo.
“Onde está o General Libre?” O velho ergueu os olhos turvos e olhou na direção de A-Ka.
“Li... General Libre?” Falou A-Ka. “Eu não sei... tem vários clones mortos lá fora, você está bem?”
“A revolução fracassou...” a voz do velho vacilou. “Como chegaram aqui?”
A-Ka contou brevemente como escaparam e o velho conseguiu ouvir até o fim, antes de dizer fracamente: "No fim, foi justamente um humano que veio até mim... alguém da espécie da minha própria mãe...”
“O que... o que isso quer dizer?” A-Ka perguntou intrigado. Ele tentou levantar o velho e perguntou, “Consegue se mover?”
“Estou prestes a morrer...” falou o idoso. “Criança, me ajude... a tirar essas coisas aqui...”
Heishi ergueu a luz fria, iluminando o rosto do velho homem. A-Ka observou com cuidado aquela feição enrugada, sentindo um senso de familiaridade, como se ele fosse alguém que conhecia. Principalmente aquele par de olhos cor azul índigo. Ele sentiu como se já os tivesse visto em algum lugar antes.
“Nós nos conhecemos?” A-Ka sentiu como se estivesse no meio de um grande quebra-cabeça. Ele continuava com a sensação de que conhecia aquele velho de algum lugar.
O velho não respondeu, apenas estendeu a mão trêmula para agarrar a de A-Ka, que rapidamente pôs sua mão na dele. O velho pressionou o dedo de A-Ka contra o braço da cadeira de rodas. Logo em seguida, um leve clique soou e A-Ka sentiu algo picar a ponta de seu dedo de maneira tão dolorida que gritou.
A-Ka cambaleou alguns passos para trás. Heishi avançou em direção ao pescoço do velho e o agarrou. Ele estava prestes e jogá-lo para longe, mas A-Ka gritou, “Espere!”
O velho estava conectado a dezenas de tubos e foi levantado de sua cadeira de rodas pelo pescoço. Esse movimento apressou sua morte iminente. Seus olhos giraram para trás quando um leve e complicado sorriso apareceu em seu rosto enquanto ele se esforçava enormemente para levantar um dedo.
“Não seja tão duro com ele, coloque-o de volta,” A-Ka se apressou em dizer.
Heishi colocou o velho de volta na cadeira de rodas e A-Ka abaixou a cabeça para olhar o próprio dedo anelar, cuja ponta gotejava sangue.
Sua cabeça girou vertiginosamente ao mesmo tempo em que ouviu sons mecânicos vindos de longe. Ele pensou consigo mesmo, merda. O velho então disse, “Leve isso... e entregue para o General Libre...”
Ele entregou um chip para A-Ka e fechou os olhos.  A-Ka falou ansioso, “Ei! Acorde!”
A cabeça do velho pendeu para baixo. Ele estava morto.
Os sons mecânicos se aproximaram. A-Ka apressadamente escondeu o chip, virou a cabeça para trás e disse, “Vamos.”
Heishi correu em direção ao túnel assim que disparos de laser vieram de fora. A-Ka se apressou em gritar, “Cuidado!”
“Volte, rápido! Tem inimigos lá fora!” respondeu Heishi.
A-Ka deslizou o cartão de segurança e a porta principal imediatamente se fechou. Do lado de fora, explosões ressoaram uma depois da outra. Eles estavam presos naquela sala.
“Encontre uma saída,” falou A-Ka imediatamente.
A-Ka e Heishi rapidamente se separaram para procurar. Conforme A-Ka buscava em todos os cantos por uma saída que os levasse para o túnel, ele não conseguia parar de pensar nos olhos índigos do velho e em como seu rosto parecia familiar. Ele continuava sentindo como se já o tivesse visto em algum lugar. E mais, sentia que o via com frequência... Enquanto pensava, ele de repente viu Heishi parar e encarar o cadáver do velho cheio de suspeitas.
“O que foi?” A-Ka endireitou o corpo e perguntou.
Heishi respondeu, “Eu conheço ele.”
O coração de A-Ka deu um pulo e ele perguntou, “Qual o nome dele?”
Heishi balançou a cabeça e não disse nada.
A-Ka queria saber mais sobre a origem do velho, mas Heishi não teria as respostas; ele havia se esquecido de tudo.
A-Ka somente pôde dizer, “Vamos continuar procurando por uma saída.”
Heishi respondeu, “Não precisa procurar mais. Isso aqui é uma prisão.”
Em um instante, A-Ka saiu de seu torpor ― a conclusão de Heishi estava correta. A partir do momento em que deram o primeiro passo para dentro, todos os sinais indicavam que o velho era um prisioneiro. Em outras palavras, com exceção da porta de entrada, não havia por onde sair.
O que eles deveriam fazer?
Logo em seguida, do lado de fora veio outra série de fortes batidas, que começaram a deformar a porta. A-Ka queria encontrar um lugar para se esconder, mas a porta já começava a entortar com o impacto; faíscas voavam pelas frestas. A-Ka inconscientemente se virou e correu até de Heishi, que agilmente saltou em sua direção. Os dois se encontraram em pleno ar e se abraçaram com força.
Ao mesmo tempo, a porta se explodiu com um estrondo e chamas voaram por todos os lados. Ainda abraçado a A-Ka, Heishi rolou para o lado.
“Rápido! Levem-no daqui!”
“Pelos céus... ele já está morto!”
“Humanos?”
“Tem dois humanos aqui!”
“Não ataquem!”
“O que está acontecendo?!”
O interior do cômodo se transformou num caos completo à medida que diversos clones adentravam. Quando A-Ka se levantou, sua cabeça latejava de dor e Heishi o protegeu, ficando à sua frente. Uma luz forte varria para frente e para trás.
A-Ka explicou, “Nós viemos parar aqui enquanto fugíamos.”
“Quando vocês entraram?” Um clone perguntou ansioso. “No momento em que entraram, o Dr. Callan ainda estava vivo?”
Heishi estava prestes a abrir a boca para responder, mas A-Ka apertou a mão dele e respondeu, “Ele ainda estava vivo e me pediu para entregar uma mensagem para o General Libre.”
Do lado de fora, veio o som de mais explosões. Desta vez, os estrondos foram extremamente claros, como se o mundo inteiro fosse ser derrubado pela força das explosões. A terra tremeu e as pessoas mal conseguiram se manter em pé. O clone líder do pelotão falou, “Não temos tempo para mais explicações! Levem-nos daqui!”
Sob a proteção do pelotão de clones, eles mais uma vez correram em direção ao túnel. Eles foram cercados pelos quatro lados por guardas-robôs, cujos números aumentavam a cada minuto. De vez em quando, alguém gritava "Mantenham as posições! Eles estão contra-atacando!” e frases do tipo. A-Ka não sabia o porquê, mas sua cabeça girava e ele se sentia enjoado enquanto cambaleava às pressas; uma onda de tontura o invadindo.
A-Ka desesperadamente agarrou o ar vazio algumas vezes, antes de conseguir segurar a mão de Heishi, que o empurrou de lado. Ele não aguentava mais, e caiu de cabeça no chão.
Heishi voltou com o cenho franzido, “Por que você é tão frágil?”
A-Ka falou com raiva, “Me deixe em paz!”
A-Ka não conseguia parar de ofegar enquanto sua visão embaçava e sentia como se tivesse uma febre alta. Heishi o levantou em seus braços e continuou a correr com os clones. Atrás deles, vinham membros da rebelião, que carregavam o corpo do velho e sua cadeira de rodas.
Eles atravessaram a passagem desajeitadamente. A-Ka perdia e retomava a consciência. Depois de um tempo, uma luz cegante apareceu de repente e brilhou sobre ele, deixando-o ainda mais tonto.
Eles tinham conseguido sair e a luz do sol brilhava intensamente. A-Ka cobriu os olhos com a mão. Até aquele momento, ele nunca tinha respirado o ar fresco da superfície tão vividamente. Ele sentia como se a ardente luz do sol fosse uma bola de fogo irradiando um calor tão forte, que era capaz de queimar sua alma.
Tudo ao redor deles ficou branco brilhante, como se tivessem sido envolvidos por uma explosão de ventos solares de uma estrela.
“Eu vou morrer...” A-Ka não sabia por que, mas sentia-se extremamente fraco.
“Aguente firme!” Heishi gritou ansiosamente próximo ao ouvido dele.
Por todo aquele tempo, Heishi continuou segurando A-Ka pela cintura. Estava bastante agitado e A-Ka sentiu que Heishi corria. Próximo à sua cabeça veio o som de clones conversando.
“Ele apenas desmaiou e está temporariamente fraco...”
“Eu não sei qual a causa disso...”
“Humanos, venham conosco! Estamos prestes a começar.”
“Deixe-o se aquecer no sol, não o mova agora...”
As vozes o envolveram como ondas batendo contra a costa e, num instante, A-Ka se acalmou. Aquele foi o momento mais transcendental que experimentou na vida. Os movimentos ao seu redor pareciam infinitamente distantes, mas ele também os via com extrema clareza. Era como se houvesse um campo magnético avassalador irradiando de sua mente e cada movimento dentro do alcance do campo parecia cristalino.
Lentamente, o campo magnético recuou e seu foco final abrangia apenas o contorno de uma pessoa ao seu lado ― Heishi.
Os contornos de Heishi ficaram mais claros. Ele disse algo para A-Ka, cujos cinco sentidos estavam retornando.
“Você está bem?” As sobrancelhas de Heishi se franziram em um belo nó.
A-Ka respondeu, “Eu... eu estou bem.”
Ele recuperou os sentidos. Seu corpo estava coberto de suor e ele inconscientemente levantou a mão. Vendo que Heishi o olhava com preocupação, ele agarrou a mão de Heishi e entrelaçou seus dedos com os dele. Heishi ficou um pouco mais tranquilo. A-Ka relembrou a fraqueza que sentiu um pouco antes e a relacionou à agulha com a qual o velho havia lhe picado. O que exatamente tinha sido injetado nele?
“Rápido, humanos, entrem a bordo! Não fiquem pra trás!” Um clone falou ao se aproximar.
Heishi mais uma vez, fez menção de levantar A-Ka em seus braços, mas ele falou: “Eu posso andar sozinho.” A-Ka então se arrastou atrás do clone para dentro de uma pequena aeronave. No momento em que entraram na plataforma de embarque, A-Ka ficou sem palavras.
Na plataforma que ocupava quase mil quilômetros quadrados, milhares de aeronaves de guerra eram lançadas e voavam em direção ao céu. As camadas de proteção magnéticas ao redor da plataforma derrubaram aviões que vieram fazer uma emboscada.
O céu estava recheado de bolas de fogo. Uma aeronave explodiu em meio a um barulho ensurdecedor e uma luz brilhante, deixando um rastro de fumaça ao mergulhar no oceano.
Como um vespeiro cutucado, dezenas de milhares de aeronaves deixaram a terra em direção ao céu, soltando fileiras e mais fileiras de bombas guiadas a laser, que voaram diretamente em direção ao centro da cidade.
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Notas de tradução:
[1] Lagartas mecânicas: a lagarta ou rastro consiste numa esteira que se acopla às rodas de certos veículos terrestres com a finalidade de lhes aumentar a aderência ao solo e, consequentemente, a sua capacidade de tração em terreno difícil
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