domingo, 11 de outubro de 2020

[Novel] Xingpan Chongqi - Capítulo 01


Tradução: Foxita.
Revisão colaborativa: Sr. Raposo.

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Capítulo 01 - O Jovem do Mar Negro

Os Criadores colocaram o eixo da Bússola da Criação nos seres humanos; as outras partes foram lançadas no mundo vasto, selvagem e desconhecido.
Com o passar do tempo, civilizações atingiram o auge de sua grandeza e depois despareceram silenciosamente. As previsões dos profetas sobre o futuro infinito, lidas nos espaços entre as estrelas, não aconteceram como esperado, e os projetos que existiam no imaginário coletivo revelaram-se meras fantasias.
Esta foi uma era terrível – no centro da galáxia, existiam apenas três territórios ainda habitados por pessoas; a humanidade experimentara três diferentes períodos de explosivo crescimento populacional, seguidos por uma repentina guerra nuclear, e finalmente a população havia sido reduzida para um total de menos de quinhentos milhões. Os recursos naturais foram totalmente exauridos; enormes dutos de energia percorriam o núcleo da Terra e canalizavam matéria bruta da fissão nuclear, transformando-a em energia. A superfície da Terra se transformou num deserto e o País de Aço ocupava a maior área - a região conhecida nos tempos antigos como “Terceiro Continente".
O Computador Central substituiu governos, órgãos parlamentares e sistemas judiciários, tornando-se a nova máquina governante. Um dia no passado, com o seu despertar, robôs[1] dominaram o mundo. A humanidade foi exterminada, forçada a fugir por suas vidas, ou subjugada...
As formas de vida de aço ocupavam a superfície. A poluição por enxofre decorrente de anos ininterruptos de produção industrial se alastrou pelo céu, fazendo com que a Cidade das Máquinas ficasse sempre encoberta por nuvens amarelas. Embora a superfície estivesse repleta de arranha-céus, todos eles eram gélidas e frias fábricas de aço. Era nas profundezas, sob a superfície, que viviam os humanos. Eles se tornaram escravos das formas de vida de aço e suas vidas cotidianas eram simples e padronizadas: eles se revezavam em turnos para trabalhar e dormir; acordando no horário para trabalharem pontualmente... como se fossem animais enjaulados.
Nosso protagonista, A-Ka, atualmente vivia no mundo subterrâneo da Cidade de Aço. Ele era um dos humanos que moravam na área de habitação conhecida como "Formigueiro".
A-Ka tinha dezesseis anos e ocupava a função de técnico de manutenção na linha de produção. Seu trabalho consistia em atender diferentes formas de vida mecânicas, ajudando-as a ajustar e alterar suas partes, e em testar novas técnicas e peças enviadas pela Central de Tecnologia. Muitos robôs estranhos passariam por ele com pedidos razoáveis ou irracionais.  
"Substitua minhas lentes infravermelhas, peça desejada número RM47,” mandou um androide.
"Sinto muito, não tem mais no estoque," respondeu A-Ka. "Você vai ter que esperar até o próximo mês."
"Substitua minhas lentes infravermelhas, peça desejada número RM47," repetiu o androide.
"Acabou," falou A-Ka. "Não tem mais no estoque."
"Artigo terceiro da Lei de Controle dos Humanos," falou o androide com sua voz morta e robótica, "Humanos não estão autorizados a rejeitar quaisquer pedidos das formas de vida computadorizadas, ou serão imediatamente exterminados."
A-Ka começou a pensar num jeito diferente de dizer aquilo - o último técnico de manutenção teve sua cabeça explodida justamente por causa desta regra. Ele olhou para baixo, encarando a abertura de laser do cliente, que no momento já começava a esquentar. Ele tinha no máximo dez segundos de vida.
"Contagem regressiva," avisou o androide. " Dez, nove..."
"Por favor, espere um momento," A-Ka respondeu apressado e tirou de sua gaveta uma lente já totalmente polida, trocando-a para o androide; era um pedaço de lixo que ele tinha tirado de outro robô anteriormente.
O androide, “O modelo não corresponde, a lente infravermelha não funcionará direito."
A-Ka respondeu, "É um problema com a tecnologia que ainda precisa ser solucionado, por favor, volte para a fila. E por favor, também avalie meu atendimento antes de ir.”
O androide começou a coletar o perfil de A-Ka, que o observou apreensivo; ele sabia que definitivamente seria processado, mas isso era melhor que perder a cabeça.
O androide foi embora e A-Ka suspirou aliviado.
"Me ajude a trocar minha fonte de energia," outro ser mecânico estava deitado em frente à sua estação de trabalho. Internamente, A-Ka agradeceu aos céus e à terra - este era um clone.
Clones eram diferentes dos androides; eles não eram como aquelas formas de vida mecânicas e frias, e eram a espécie mais parecida com os humanos - os habitantes da Cidade das Máquinas dividiam-se em três níveis distintos; no topo estavam as formas de vida em aço; no meio estavam os clones, e na classe mais baixa estavam as pessoas como A-Ka, a raça humana original.
“Você precisa de uma bateria ou de um centro nuclear?” A-Ka perguntou.
“Bateria,” o clone respondeu dando uma olhada no androide que acabava de sair. “Eu pensei que você seria feito em pedaços pelo laser, o que seria bastante problemático. Meu sistema de reconhecimento de rotas sempre apresenta problemas, se eu não o trocasse aqui não saberia o caminho de volta.”
O clone se virou e A-Ka abriu uma pequena caixa atracada às costas dele, dizendo, “Seu sistema de GPS foi afetado pela umidade.”
A-Ka acendeu uma luz enquanto ajudava o clone a trocar a peça defeituosa por uma sobressalente. O clone não emitiu qualquer som, apenas ficou ali sentado em silêncio e A-Ka não pôde evitar observar o perfil dele.
Todos os clones tinham exatamente as mesmas características e todos eram homens, de modo que os humanos só conseguiam distingui-los pelas roupas que usavam ou pelo número de série. Essa questão intrigou A-Ka por um bom tempo.
Em comparação às formas de vida em aço, A-Ka estava mais disposto a prestar serviços para os clones, apenas porque eles também tinham emoções - também sentiam alegria; raiva; tristeza e contentamento. De vez em quando, eles também eram afetados por seus hormônios, o que não acontecia com os robôs. Se humanos executassem um comando errado na frente dos robôs, seriam imediatamente exterminados.
“Você é novo aqui,” falou o clone.
A-Ka perguntou, “Como você sabe?”
A-Ka havia checado os registros no computador e eles mostraram que aquele clone não tinha comparecido àquela estação de trabalho nos últimos três anos.
O clone respondeu, “Por que você é muito curioso e me observou por um longo tempo. A maioria dos humanos que saem do Formigueiro são assim no início.”
A-Ka não se atreveu a responder; segundo o conselho de seus antecessores, era bom também não provocar os clones. O efeito de emoções como alegria, dor e tristeza era mais forte para eles, e assim que os hormônios de seus corpos se desequilibravam, eles também acabavam matando humanos em seu caminho.
“Perder o foco durante o trabalho te faz suscetível a cometer erros; as avaliações de seus clientes cairão,” falou o clone.
A-Ka assentiu rapidamente, “Obrigado pelo lembrete.”
O sistema de avaliação de A-Ka tinha um total de cinco pontos básicos. Cada vez que recebesse um "D", perderia um ponto, ao passo que, quando recebesse um "A", ganharia um ponto. Caso os cinco pontos fossem zerados, o sistema de fiscalização o classificaria como “execução necessária”.
Acreditava-se que os humanos que se tornaram descartáveis não mais eram capazes de contribuir para a sociedade e seriam levados para a Fábrica de Transformação e Renascimento, onde sofreriam dissolução proteica - em outras palavras, seriam mortos. Os corpos seriam repartidos em seus componentes básicos e depois voltariam ao sistema de bioenergia, onde seriam remontados em novos clones ou transformados em matéria-prima para produção de nutrientes.
A-Ka trocou a bateria do sistema de posicionamento e também substituiu o chip de navegação por um novo, para que assim o sistema funcionasse ainda melhor que antes.
A-Ka falou, “Pronto.”
“Suas habilidades são muito boas," o clone falou levemente.
A-Ka respondeu, “Obrigado.”
Quando saiu, o clone casualmente avaliou A-Ka com um "D".
O coração A-Ka se encheu de raiva, mas ele não se atreveu a dizer nada. Ele deu uma olhada rápida na tela do seu computador, ainda faltavam trinta segundos para sair do trabalho.
O tempo passou segundo a segundo. Quando o sinal eletrônico tocou, A-Ka rapidamente reorganizou as ferramentas e limpou suas coisas, virando-se em direção à porta que dava para o túnel bem atrás de si.
“Por favor, saiam da estação de manutenção dentro de dez segundos,” lembrou-lhes uma voz feminina eletrônica.
A-Ka entrou no túnel em formato de anel. O som de passos era intenso e ordenado enquanto a oficina de manutenção passava pela troca de turno. Humanos de todos os cantos inundavam o saguão central, passando pelo detector de metais que apitava incessantemente. Depois de passar pela porta principal, a plataforma caía repentinamente, adentrando o solo.
Operários humanos de todas as idades, trajando o mesmo uniforme que A-Ka, convergiam na plataforma vindos de diferentes túneis e pegavam o elevador para cima e para baixo. Naquele espaço estreito e apertado, eles eram empurrados e espremidos uns contra os outros; todos pareciam ter pressa e ninguém falava nada.
Na primeira parada do elevador, dois robôs sentinelas entraram. O enxame de pessoas recuou apressadamente, abrindo espaço para eles.
A luz vermelha se acendeu com uma campainha e a voz feminina eletrônica anunciou, “Aguardando a passagem de outro elevador.”
Dentro do elevador estava extremamente sufocante e todos suavam, mas ninguém se atrevia a dizer nada ou se mover desnecessariamente. Uma pessoa ao lado de A-Ka usou o cotovelo para cutucá-lo.
A-Ka virou a cabeça, só então percebendo que as luzes dos dois robôs tinham se acendido e que as câmeras tinham se virado em sua direção. A câmera de vigilância estava ligada e um círculo de luz desfocou e focou novamente, travando no bolso no peito dele. O coração de A-Ka parecia pular para fora do peito de tão forte que batia.
“O que você fez?” A pessoa ao lado dele perguntou em voz baixa. “Parece que eles estão te observando.”
Num instante, o corpo inteiro de A-Ka começou a tremer; enquanto trabalhava, ele tinha escondido um chip em segredo.
A voz eletrônica do robô sentinela soou.
“Atenção, sua temperatura corporal está muito elevada.”
Todos dentro do elevador ficaram tensos; os sensores infravermelhos dos robôs sentinelas monitoravam cada um dos humanos do Formigueiro. A-Ka imediatamente pensou na seguinte cena - no sistema detector das sentinelas, dentro de todo o elevador, o contorno infravermelho do seu corpo causado por sua temperatura elevada deveria ser bastante suspeito.
“Não tem... nada de errado, não é?” A-Ka perguntou tremendo. “Eu... não violei nenhuma lei.”
Agora todos olhavam para A-Ka.
Com um barulho de campainha, a luz verde do elevador se acendeu novamente e o elevador continuou a descer com um ruído estrondoso.
“Sujeito à inspeção,” o robô sentinela advertiu. “Atenção, começando quatro tipos de inspeção.”
O único pensamento de A-Ka era: estou acabado.
Assim que os robôs sentinelas encontrassem o chip roubado, A-Ka seria imediatamente abatido no local. Suor escorria por suas costas e sua mente estava totalmente em branco.
Naquele momento, um mecânico de meia-idade atrás de A-Ka tremia sem parar, seu rosto branco como papel, enquanto suor escorria como chuva. Seus espasmos eram tão violentos que ele praticamente atingiu A-Ka.
A-Ka de repente se virou e o homem de meia-idade agarrou seu ombro; ele ficou perdido por um momento.
“Me salve... me salve...” Aquele mecânico de meia-idade parecia estar se agarrando a seu último fio de esperança enquanto apertava a mão de A-Ka.
Todos perceberam uma coisa ao mesmo tempo: este homem estava prestes a ser executado.
“Você chegou ao seu destino: o Formigueiro," falou uma voz de mulher no elevador.
A porta do elevador se abriu e o homem de meia-idade imediatamente empurrou A-Ka para o lado, correndo para fora.
“Atenção, pare imediatamente!” Os robôs sentinelas saíram juntos em perseguição. As pessoas no elevador se apressaram para fora na sequência, vendo o homem de meia-idade disparar em direção ao corredor.
“Se abaixem!” Alguém gritou.
Todos no corredor estavam em pânico e a câmera de vigilância instalada no teto lançou um prego de metal fino e pequeno com um zumbido. O prego de metal abriu suas asas e disparou descontroladamente para frente e para trás em pleno ar.
Com um grande estrondo, o objeto de metal penetrou o crânio do fugitivo de meia-idade, atirando-o contra uma parede na qual ele foi firmemente pregado.
O grupo de pessoas ficou inquieto; todos falavam ao mesmo tempo. A-Ka estava coberto de suor gelado; de acordo com as conversas que ouviu ao seu redor, aquele mecânico tinha obtido três avaliações "D" hoje. Após comer sua última refeição, ele seria escoltado para ser exterminado.
Os robôs sentinelas estavam limpando a cena cruel e A-Ka aproveitou a oportunidade para prender a respiração e deixar o corredor. Ele andou cada vez mais rápido até chegar ao fim e ali ele não conseguiu se controlar e praticamente correu para dentro do banheiro. Ligando a água fria, ele lavou o corpo tentando esfriar sua temperatura que insistia em subir descontroladamente por causa da sua ansiedade. Em seguida, ele acalmou as batidas violentas e frenéticas do próprio coração.
O corpo inteiro de A-Ka estava ensopado e pingava água. Subitamente, o medo o envolveu em seu abraço; ele sabia qual seria o destino final do mecânico - o cadáver seria levado para a fábrica e congelado, então seria desmembrado e jogado em lotes na solução de decomposição para ser corroído, desintegrando-se em nutrientes básicos que seriam usados para criar novos clones ou ração animal.
A-Ka podia apenas sentir uma onda de raiva e dor assolar seu coração; queria berrar descontroladamente, como se fosse louco, mas não podia. Queria desabafar, mas nenhum lugar era seguro; havia câmeras de vigilância por todo lado, ele sequer se atrevia a gritar.  Com as costas viradas para a câmera de vigilância, ele puxou do bolso da camisa o chip de navegação roubado e deu uma olhada. O chip era como uma batata quente queimando sua mão, aterrorizando-o com sua mera existência.
Ele precisava se livrar daquilo rápido... quanto mais A-Ka pensava a respeito, mais medo sentia. Ele saiu do banheiro, se secou e voltou para o alojamento.
Os humanos do Formigueiro iam e vinham, cada um ocupado com seus próprios afazeres. Quando voltou para sua própria seção, A-Ka finalmente respirou aliviado. Ele estava absolutamente exausto e não conseguia fazer mais nada; este era apenas seu primeiro dia de trabalho.
Ele deu uma olhada em seu relógio; tinha dez horas para descansar. Quando entrou no alojamento, alguém acenou para ele. A-Ka retribuiu a cortesia com um sorriso duro.
“A-Ka-gege[2] voltou do trabalho!” Uma criança gritou. “Como é a superfície?”
“O que achou do seu primeiro dia de trabalho?” Uma pessoa jovem se aproximou lhe dando um tapinha no ombro.
A-Ka assentiu e disse, “Foi... foi tudo bem.”
Dentre os que viviam ali, uma grande parte era de pessoas mais jovens que A-Ka. O Formigueiro era dividido em catorze mil seções e os operários de cada seção eram intitulados de "Representantes Humanos". O comportamento do "Representante Humano" na superfície afetava diretamente a qualidade de vida de toda a seção. O restante dos humanos foi deixado para ser treinado por robôs; se reproduzir em relativa privacidade; ou para aprender novas habilidades.
Da mesma forma, pessoas submetidas a várias rodadas de testes, mas que não dominaram qualquer tipo de habilidade, seriam consideradas não-contribuintes e o único fim que as esperava era a execução.
O “D” que tinha recebido hoje pesava na mente de A-Ka, bem como o fato de que seria processado em breve. O sistema jurídico analisaria as gravações do seu trabalho e, se tivesse sorte, talvez só recebesse um “B”, que não lhe daria e nem tiraria pontos. Mas se fosse um “D”, a pressão sobre ele se tornaria muito forte.
Os jovens estavam sentados no salão lendo. A-Ka se sentou de um lado, comendo em silêncio a refeição a ele atribuída, quando viu uma criança muito pequena deitada ao lado da mesa o observando.
“Eu posso comer sua fruta?” A criança perguntou.
A-Ka respondeu, “Claro.”
A-Ka entregou a fruta e assim que a criança a recebeu, saiu correndo para compartilhar com o restante dos amigos o presente especial que A-Ka havia lhe dado.
Num piscar de olhos, a voz eletrônica transmitiu um aviso; a hora de dormir começou e os humanos que precisavam descansar deveriam voltar para suas câmaras de dormir. Em seguida, A-Ka jogou os pratos limpos na lata de lixo e voltou para sua câmara de dormir com o coração cheio de ansiedade.
Cada humano tinha sua própria câmara de dormir, este era o único espaço privado que existia no Formigueiro. A-Ka configurou a transmissão relaxante para dormir antes de subir para sua própria câmara.  O espaço era amplo e podia até comportar dois A-Kas espremidos lado a lado. Ali havia até um pequeno vaso de planta verde.
Escureceu do lado de fora; a escotilha das câmaras de dormir tinha se fechado.
A-Ka acendeu a luz de leitura e puxou o envelhecido chip de navegação que havia roubado e trazido de volta. Este chip era muito útil para A-Ka.
Ele queria dormir um pouco e não sair, pelo menos não hoje. Somente dormir o faria esquecer temporariamente dos problemas com aquele “D”. No entanto, depois que a transmissão para dormir começou, A-Ka ficou lá deitado por um tempo, sua frustração aumentando enquanto se virava de um lado para o outro, perdendo o sono.
Ele se forçou a fechar os olhos, mas não conseguia dormir; ele não parava de pensar na entidade robótica que tinha escondido lá embaixo, bem como no chip de navegação que roubou hoje. Depois de meia hora, A-Ka se levantou, abriu sua câmara de dormir, e escapuliu.
No dormitório, fileiras e mais fileiras de câmaras de dormir emitiam uma luz azul.  A-Ka deixou o local com passos rápidos, pressionando o sensor que verificou sua digital e voltando para os alojamentos. Como de costume, o lugar ainda estava cheio de humanos. A-Ka então entrou em um túnel de segurança e seguiu descendo as escadas até o fim, se escondendo no canto de uma escada antes da curva.
De repente, ele ouviu um barulho baixo atrás de si, como se uma porta tivesse sido aberta.
Naquele instante, o sangue no corpo de A-Ka pareceu congelar. Quem era? Ele inconscientemente queria se virar, mas se forçou a suprimir aquele ímpeto.
Você não pode se virar, A-Ka advertiu a si mesmo. Não havia sons robóticos, então não era um guarda. Provavelmente era um humano vindo para fazer sabe-se lá o quê. A não ser que, além dele, alguém mais tivesse descoberto esse túnel.
A-Ka ouviu o barulho da porta se fechando e respirou aliviado. Somente então ele se atreveu a virar a cabeça e olhar: não havia ninguém ali, mas ele ainda se sentia inquieto. Quando as câmeras de vigilância se viraram em outra direção, ele permaneceu imóvel por três segundos, disparando na sequência como uma flecha, rapidamente subindo a rampa de lixo.
A-Ka escorregou por toda a rampa até a lixeira afastada dos alojamentos.  O lixo aqui era incinerado uma vez a cada seis horas e estava cheio de um cheiro pungente de fumaça que ainda não havia se dissipado.
Ele rastejou para fora da rampa de lixo por um buraco e desceu uma escada enferrujada, sendo recebido pela brisa do mar, que soprou em seu rosto. O som das ondas era esmagador, quase o afogando.
Esse tipo de clima infernal... A-Ka começou a se arrepender de ter saído hoje. Ele ainda estava imerso na ansiedade dos recentes acontecimentos; será que mais alguém tinha descoberto esse túnel? Mas como isso era possível? A lixeira estava abandonada há bastante tempo e recentemente não havia nenhuma pegada nova...
A rampa de lixo levava diretamente à baía, onde céu, terra e tudo mais estavam escuros como breu. Raios ligavam o céu e o mar; o rugido das ondas e o agito das nuvens carregadas pareciam alertá-lo para voltar o mais rápido possível.
Este não era um dia bom para partir. Comparado à imensidão do céu e do oceano, A-Ka não era nada mais que um pontinho preto rastejando cuidadosamente sobre um recife enquanto ia em direção a uma caverna escondida próxima ao mar. Nesta gruta, ele tinha escondido um robô. Agora mesmo, enquanto ia até lá, ele rezava incessantemente para que o robô ainda estivesse ali quando chegasse; para que ninguém o tivesse levado embora.
Se o sistema judiciário tomasse conhecimento desse tipo de coisa, A-Ka sabia, sem sombra de dúvidas, que o único destino que o aguardava era a execução. Mas desde que tinha dez anos e sem querer descobriu a passagem na rampa de lixo que levava para o mundo exterior, ele era incapaz de resistir a querer sair e respirar o ar lá fora.
Embora o ar fosse carregado com o cheiro pungente de enxofre e a superfície do mar estivesse coberta por uma camada negra de petróleo bruto, nada disso era capaz de impedir que o coração de A-Ka ansiasse por liberdade. Ele usou os últimos seis anos para reunir suprimentos do Formigueiro e um tanto de sucata de aço da rampa de lixo e, pouco a pouco, os levou até lá.
No começo, ele queria apenas construir um barco pequeno e deixar a Cidade das Máquinas em busca de um lugar em que pudesse viver. Ele ouviu dizer que do outro lado do oceano ainda existia uma nação na qual os humanos se reuniam. Lá, não existia um Computador Central chamado “Pai” que controlava todo mundo; também não havia robôs que massacravam cruelmente humanos a qualquer momento. Aquela era uma verdadeira nação comandada por humanos.
A-Ka queria ir para aquele lugar, então começou a usar seu conhecimento para reunir as peças necessárias para montar um veículo capaz de levá-lo. No entanto, os materiais que tinha coletado eram aleatórios e dos tipos mais variados, e no fim ele acabou montando um estranho aparato mecânico que era como um robô.
A-Ka deixou um espaço no robô no qual pudesse se sentar, fazendo com que fosse mais fácil pilotá-lo. Ele lhe deu o nome de “K”. Em comparação com as técnicas intrincadas e complexas da Cidade das Máquinas, que usava reatores nucleares para alimentar formas de vida de aço, essa coisa chamada K parecia mais uma sucata.
Mas A-Ka tinha muito orgulho de sua criação. Ao menos K não receberia ordens do “Pai” ou do sistema judiciário, e não atiraria laser em humanos. O que quer que A-Ka lhe pedisse para fazer, ele faria. Essa possibilidade de fazer um robô seguir ordens humanas deu a A-Ka um enorme sentimento de realização.
Ele não podia evitar considerar K seu único amigo; este era um segredo que guardou com muito custo. Ele não se atrevia a contar para ninguém, mas esperava pelo dia que poderia pilotar K e ir embora dali.
Mas, antes disso, ele precisava instalar uma configuração em K que o permitisse extrair trítio da água do mar para fornecer energia para o reator de fusão.
O interior da caverna estava escuro e úmido, e o estrondo dos trovões e das ondas se agitando do lado de fora era avassalador. Quando A-Ka adentrou a escura caverna, ligou a fonte de luz e retirou a lona que cobria K. A concha de aço encarou A-Ka de volta.
K não era dotado de inteligência, mas A-Ka planejava, um dia, ajudá-lo a alcançar inteligência básica.
Ele abriu a tampa frontal do peito de K e instalou o chip de navegação que tinha roubado. Antes de testá-lo, ele o conectou à fonte de alimentação e aguardou que o sistema de navegação iniciasse.
Do lado de fora, o som dos trovões aumentou e as ondas rugiram descontroladamente, como se algo estivesse batendo fortemente contra a lateral da caverna, causando estrondos enormes.
A-Ka não podia esperar por K. Ele correu pra fora com medo de que a água invadisse a caverna rochosa. Mas tão logo saiu, um grande objeto foi pego pela onda violenta, sendo levado em direção à entrada da caverna.
“Ah!” A voz de A-Ka foi abafada pelo grande estrondo.
Naquele instante, ele viu algo brilhar na água do mar e bater em várias rochas enquanto flutuava em direção à entrada da caverna. Quatro ou cinco estalos altos ecoaram e aquilo caiu de algumas rochas que tinham mais de dez metros de altura. Os vários sons abafados eram de um objeto metálico batendo fortemente contra as rochas.
A-Ka estava encharcado da cabeça aos pés pela água do mar e ainda não tinha se recuperado do choque. Ele se deitou de bruços no topo da caverna rochosa e olhou para baixo, vendo um objeto metálico e brilhante sendo arrastado pelas ondas negras. Parecia ser algo grande e talvez tivesse alguma utilidade.
Todavia, A-Ka não se atrevia a descer precipitadamente ou seria imediatamente varrido pelo maremoto.
Ele primeiramente desligou a fonte de energia de K para evitar um curto-circuito e depois espiou ansiosamente de sua posição próxima à entrada da caverna. As ondas diminuíram gradualmente, permitindo que ele visse de maneira mais clara - era um baú metálico que balançava na água, sendo empurrado vez ou outra em direção à costa pelas ondas, antes de ser novamente puxado para o oceano pela maré.
A-Ka rezou aos céus para que deixassem aquele baú metálico ali. O que poderia haver dentro? Talvez o próprio material do baú pudesse ser transformado em um novo corpo robótico para K? Ou possivelmente ali dentro estivesse o reator de fusão que ele tão desesperadamente precisava?
As ondas se acalmaram aos poucos, enquanto o mar finalmente recuperava sua tranquilidade; a tempestade havia passado.
Com enorme dificuldade, A-Ka desceu até a praia, onde o petróleo negro cobria toda a superfície do mar. Ele deixou um rastro de pegadas pela areia.
Uma onda empurrou o baú para a costa; ele podia vê-lo!
A-Ka seguiu pela orla, correndo em direção ao baú de liga de aço. Pouco antes, a vista que tinha de cima das pedras não era precisa; foi só quando se aproximou que percebeu que não era um baú, mas sim uma câmara de dormir.
A-Ka olhou para a câmara de dormir com desconfiança, mas quando as ondas estavam prestes a varrê-la novamente, ele apressadamente pulou no mar, fazendo uso de uma enorme quantidade de força para empurrá-la para a costa.
“República... do Leão," A-Ka viu um símbolo meio apagado em formato de leão no objeto metálico à sua frente.
Esta câmara de dormir era muito durável. Seu exterior estava manchado de ferrugem e coberto de algas marinhas, ela obviamente ficou à deriva no oceano por muito, muito tempo.  Nela havia um buraco e seu interior continha de petróleo bruto até a metade, cobrindo um cadáver.
A-Ka suspirou. Tendo ficado à deriva no mar por tanto tempo, ele deveria estar apodrecido agora. Teria sobrado algo de valor?
A-Ka puxou uma chave inglesa e tentou forçar a abertura da câmara de dormir à frente de seus olhos, mas ela não se mexeu nem um centímetro sequer. Ele ofegou ruidosamente enquanto tentava abri-la e seus olhos de repente captaram uma linha de palavras na parte inferior da câmara.
“Ano 7210, Quarto mês, Heishi[3].”
Ano 7210!
A-Ka ficou totalmente chocado; este era o ano de 10073, então esta era uma câmara de dormir antiga de quase três mil anos atrás?!
Ele a encarou por um bom tempo e percebeu que não podia continuar enrolando daquele jeito. Então, começou a procurar pelo disjuntor da câmara. A configuração desta máquina antiga era completamente diferente de qualquer tecnologia que A-Ka conhecia.
A-Ka prendeu a respiração na expectativa de ter encontrado uma joia de valor inestimável ou descoberto um novo mundo. Pensamentos de tecnologias antigas instantaneamente inundaram sua mente: talvez os antigos tivessem deixado para trás algum tipo de fonte de energia ou uma arma. Em qualquer caso, mesmo que fossem apenas algumas placas de circuito, ele encontraria alguma utilidade para elas...
A-Ka não sabia no que tinha encostado, mas a câmara de dormir se acendeu por inteiro. Ele se assustou e correu para trás, seus braços e pernas se agitando ao fazê-lo. Ele imediatamente pensou que lá dentro não deveria haver ninguém vivo, pois tinham se passado quase três mil anos.
A câmara de dormir se abriu lentamente e A-Ka se aproximou, descobrindo que dentro havia outra camada. O espaço entre as duas camadas da câmara estava cheio de petróleo bruto e água do mar, que se derramaram para fora num instante e uma fumaça densa subiu na sequência. A camada interna era transparente e nela apareceu o aviso de "bateria fraca".
A tampa da câmara se abriu e a névoa escoou para fora, se dissipando.
Um homem completamente nu estava deitado lá dentro. Seus braços e pernas eram proporcionais e ele tinha cerca de 1,80m; seu cabelo era bem curto e preto. A-Ka olhou para ele atentamente e estendeu a mão para tocar seu corpo.
Aquele homem ainda estava vivo.

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Notas de tradução:
[1] “Androides” são robôs com aparência humanoide, enquanto “ciborgues” são uma mistura de peças orgânicas e não-orgânicas. “Robôs” refere-se a qualquer máquina capaz de realizar tarefas de maneira automática.
[2] Gege: literalmente irmão mais velho. Eles não são realmente irmãos, é um honorífico usado para se referir a primos ou homens da própria faixa etária ou mais velhos.
[3] Heishi: literalmente “Pedra Preta”.
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Um comentário:

  1. estou ansiosa por mais! muito obrigada pela tradução maravilhosa, amo o vcs 😍😘❤

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