Tradução: Foxita.
Revisão colaborativa: Sr. Raposo.
✶✶✶✶✶
Capítulo
01 - O Jovem do Mar Negro
Os Criadores colocaram o eixo
da Bússola da Criação nos seres humanos; as outras partes foram lançadas no
mundo vasto, selvagem e desconhecido.
Com o passar do tempo, civilizações
atingiram o auge de sua grandeza e depois despareceram silenciosamente. As
previsões dos profetas sobre o futuro infinito, lidas nos espaços entre as
estrelas, não aconteceram como esperado, e os projetos que existiam no
imaginário coletivo revelaram-se meras fantasias.
Esta foi uma era terrível – no centro da
galáxia, existiam apenas três territórios ainda habitados por pessoas; a
humanidade experimentara três diferentes períodos de explosivo crescimento
populacional, seguidos por uma repentina guerra nuclear, e finalmente a
população havia sido reduzida para um total de menos de quinhentos milhões. Os
recursos naturais foram totalmente exauridos; enormes dutos de energia
percorriam o núcleo da Terra e canalizavam matéria bruta da fissão nuclear, transformando-a
em energia. A superfície da Terra se transformou num deserto e o País de Aço
ocupava a maior área - a região conhecida nos tempos antigos como “Terceiro
Continente".
O Computador Central substituiu governos,
órgãos parlamentares e sistemas judiciários, tornando-se a nova máquina governante.
Um dia no passado, com o seu despertar, robôs[1] dominaram o mundo.
A humanidade foi exterminada, forçada a fugir por suas vidas, ou subjugada...
As formas de vida de aço ocupavam a
superfície. A poluição por enxofre decorrente de anos ininterruptos de produção
industrial se alastrou pelo céu, fazendo com que a Cidade das Máquinas ficasse
sempre encoberta por nuvens amarelas. Embora a superfície estivesse repleta de
arranha-céus, todos eles eram gélidas e frias fábricas de aço. Era nas
profundezas, sob a superfície, que viviam os humanos. Eles se tornaram escravos
das formas de vida de aço e suas vidas cotidianas eram simples e padronizadas:
eles se revezavam em turnos para trabalhar e dormir; acordando no horário para
trabalharem pontualmente... como se fossem animais enjaulados.
Nosso protagonista, A-Ka, atualmente
vivia no mundo subterrâneo da Cidade de Aço. Ele era um dos humanos que moravam
na área de habitação conhecida como "Formigueiro".
A-Ka tinha dezesseis anos e ocupava a
função de técnico de manutenção na linha de produção. Seu trabalho consistia em
atender diferentes formas de vida mecânicas, ajudando-as a ajustar e alterar
suas partes, e em testar novas técnicas e peças enviadas pela Central de
Tecnologia. Muitos robôs estranhos passariam por ele com pedidos razoáveis ou
irracionais.
"Substitua minhas lentes
infravermelhas, peça desejada número RM47,” mandou um androide.
"Sinto muito, não tem mais no
estoque," respondeu A-Ka. "Você vai ter que esperar até o próximo mês."
"Substitua minhas lentes
infravermelhas, peça desejada número RM47," repetiu o androide.
"Acabou," falou A-Ka. "Não
tem mais no estoque."
"Artigo terceiro da Lei de Controle
dos Humanos," falou o androide com sua voz morta e robótica, "Humanos
não estão autorizados a rejeitar quaisquer pedidos das formas de vida
computadorizadas, ou serão imediatamente exterminados."
A-Ka começou a pensar num jeito diferente
de dizer aquilo - o último técnico de manutenção teve sua cabeça explodida
justamente por causa desta regra. Ele olhou para baixo, encarando a abertura de
laser do cliente, que no momento já começava a esquentar. Ele tinha no máximo
dez segundos de vida.
"Contagem regressiva," avisou o
androide. " Dez, nove..."
"Por favor, espere um momento,"
A-Ka respondeu apressado e tirou de sua gaveta uma lente já totalmente polida,
trocando-a para o androide; era um pedaço de lixo que ele tinha tirado de outro
robô anteriormente.
O androide, “O modelo não corresponde, a
lente infravermelha não funcionará direito."
A-Ka respondeu, "É um problema com a
tecnologia que ainda precisa ser solucionado, por favor, volte para a fila. E por
favor, também avalie meu atendimento antes de ir.”
O androide começou a coletar o perfil de
A-Ka, que o observou apreensivo; ele sabia que definitivamente seria
processado, mas isso era melhor que perder a cabeça.
O androide foi embora e A-Ka suspirou
aliviado.
"Me ajude a trocar minha fonte de
energia," outro ser mecânico estava deitado em frente à sua estação de
trabalho. Internamente, A-Ka agradeceu aos céus e à terra - este era um clone.
Clones eram diferentes dos androides;
eles não eram como aquelas formas de vida mecânicas e frias, e eram a espécie
mais parecida com os humanos - os habitantes da Cidade das Máquinas dividiam-se
em três níveis distintos; no topo estavam as formas de vida em aço; no meio
estavam os clones, e na classe mais baixa estavam as pessoas como A-Ka, a raça
humana original.
“Você precisa de uma bateria ou de um
centro nuclear?” A-Ka perguntou.
“Bateria,” o clone respondeu dando uma
olhada no androide que acabava de sair. “Eu pensei que você seria feito em
pedaços pelo laser, o que seria bastante problemático. Meu sistema de
reconhecimento de rotas sempre apresenta problemas, se eu não o trocasse aqui não
saberia o caminho de volta.”
O clone se virou e A-Ka abriu uma pequena
caixa atracada às costas dele, dizendo, “Seu sistema de GPS foi afetado pela
umidade.”
A-Ka acendeu uma luz enquanto ajudava o clone
a trocar a peça defeituosa por uma sobressalente. O clone não emitiu qualquer
som, apenas ficou ali sentado em silêncio e A-Ka não pôde evitar observar o
perfil dele.
Todos os clones tinham exatamente as
mesmas características e todos eram homens, de modo que os humanos só
conseguiam distingui-los pelas roupas que usavam ou pelo número de série. Essa
questão intrigou A-Ka por um bom tempo.
Em comparação às formas de vida em aço,
A-Ka estava mais disposto a prestar serviços para os clones, apenas porque eles
também tinham emoções - também sentiam alegria; raiva; tristeza e
contentamento. De vez em quando, eles também eram afetados por seus hormônios,
o que não acontecia com os robôs. Se humanos executassem um comando errado na
frente dos robôs, seriam imediatamente exterminados.
“Você é novo aqui,” falou o clone.
A-Ka perguntou, “Como você sabe?”
A-Ka havia checado os registros no
computador e eles mostraram que aquele clone não tinha comparecido àquela
estação de trabalho nos últimos três anos.
O clone respondeu, “Por que você é muito
curioso e me observou por um longo tempo. A maioria dos humanos que saem do
Formigueiro são assim no início.”
A-Ka não se atreveu a responder; segundo o
conselho de seus antecessores, era bom também não provocar os clones. O efeito
de emoções como alegria, dor e tristeza era mais forte para eles, e assim que
os hormônios de seus corpos se desequilibravam, eles também acabavam matando
humanos em seu caminho.
“Perder o foco durante o trabalho te faz
suscetível a cometer erros; as avaliações de seus clientes cairão,” falou o
clone.
A-Ka assentiu rapidamente, “Obrigado pelo
lembrete.”
O sistema de avaliação de A-Ka tinha um
total de cinco pontos básicos. Cada vez que recebesse um "D",
perderia um ponto, ao passo que, quando recebesse um "A", ganharia um
ponto. Caso os cinco pontos fossem zerados, o sistema de fiscalização o
classificaria como “execução necessária”.
Acreditava-se que os humanos que se tornaram
descartáveis não mais eram capazes de contribuir para a sociedade e seriam
levados para a Fábrica de Transformação e Renascimento, onde sofreriam
dissolução proteica - em outras palavras, seriam mortos. Os corpos seriam
repartidos em seus componentes básicos e depois voltariam ao sistema de
bioenergia, onde seriam remontados em novos clones ou transformados em
matéria-prima para produção de nutrientes.
A-Ka trocou a bateria do sistema de
posicionamento e também substituiu o chip de navegação por um novo, para que
assim o sistema funcionasse ainda melhor que antes.
A-Ka falou, “Pronto.”
“Suas habilidades são muito boas," o
clone falou levemente.
A-Ka respondeu, “Obrigado.”
Quando saiu, o clone casualmente avaliou
A-Ka com um "D".
O coração A-Ka se encheu de raiva, mas ele
não se atreveu a dizer nada. Ele deu uma olhada rápida na tela do seu
computador, ainda faltavam trinta segundos para sair do trabalho.
O tempo passou segundo a segundo. Quando
o sinal eletrônico tocou, A-Ka rapidamente reorganizou as ferramentas e limpou
suas coisas, virando-se em direção à porta que dava para o túnel bem atrás de
si.
“Por favor, saiam da estação de
manutenção dentro de dez segundos,” lembrou-lhes uma voz feminina eletrônica.
A-Ka entrou no túnel em formato de anel.
O som de passos era intenso e ordenado enquanto a oficina de manutenção passava
pela troca de turno. Humanos de todos os cantos inundavam o saguão central,
passando pelo detector de metais que apitava incessantemente. Depois de passar
pela porta principal, a plataforma caía repentinamente, adentrando o solo.
Operários humanos de todas as idades,
trajando o mesmo uniforme que A-Ka, convergiam na plataforma vindos de
diferentes túneis e pegavam o elevador para cima e para baixo. Naquele espaço
estreito e apertado, eles eram empurrados e espremidos uns contra os outros;
todos pareciam ter pressa e ninguém falava nada.
Na primeira parada do elevador, dois
robôs sentinelas entraram. O enxame de pessoas recuou apressadamente, abrindo
espaço para eles.
A luz vermelha se acendeu com uma
campainha e a voz feminina eletrônica anunciou, “Aguardando a passagem de outro
elevador.”
Dentro do elevador estava extremamente
sufocante e todos suavam, mas ninguém se atrevia a dizer nada ou se mover
desnecessariamente. Uma pessoa ao lado de A-Ka usou o cotovelo para cutucá-lo.
A-Ka virou a cabeça, só então percebendo
que as luzes dos dois robôs tinham se acendido e que as câmeras tinham se
virado em sua direção. A câmera de vigilância estava ligada e um círculo de luz
desfocou e focou novamente, travando no bolso no peito dele. O coração de A-Ka
parecia pular para fora do peito de tão forte que batia.
“O que você fez?” A pessoa ao lado dele
perguntou em voz baixa. “Parece que eles estão te observando.”
Num instante, o corpo inteiro de A-Ka
começou a tremer; enquanto trabalhava, ele tinha escondido um chip em segredo.
A voz eletrônica do robô sentinela soou.
“Atenção, sua temperatura corporal está muito
elevada.”
Todos dentro do elevador ficaram tensos;
os sensores infravermelhos dos robôs sentinelas monitoravam cada um dos humanos
do Formigueiro. A-Ka imediatamente pensou na seguinte cena - no sistema detector
das sentinelas, dentro de todo o elevador, o contorno infravermelho do seu corpo
causado por sua temperatura elevada deveria ser bastante suspeito.
“Não tem... nada de errado, não é?” A-Ka perguntou
tremendo. “Eu... não violei nenhuma lei.”
Agora todos olhavam para A-Ka.
Com um barulho de campainha, a luz verde
do elevador se acendeu novamente e o elevador continuou a descer com um ruído
estrondoso.
“Sujeito à inspeção,” o robô sentinela
advertiu. “Atenção, começando quatro tipos de inspeção.”
O único pensamento de A-Ka era: estou
acabado.
Assim que os robôs sentinelas
encontrassem o chip roubado, A-Ka seria imediatamente abatido no local. Suor
escorria por suas costas e sua mente estava totalmente em branco.
Naquele momento, um mecânico de
meia-idade atrás de A-Ka tremia sem parar, seu rosto branco como papel,
enquanto suor escorria como chuva. Seus espasmos eram tão violentos que ele
praticamente atingiu A-Ka.
A-Ka de repente se virou e o homem de
meia-idade agarrou seu ombro; ele ficou perdido por um momento.
“Me salve... me salve...” Aquele mecânico
de meia-idade parecia estar se agarrando a seu último fio de esperança enquanto
apertava a mão de A-Ka.
Todos perceberam uma coisa ao mesmo
tempo: este homem estava prestes a ser executado.
“Você chegou ao seu destino: o
Formigueiro," falou uma voz de mulher no elevador.
A porta do elevador se abriu e o homem de
meia-idade imediatamente empurrou A-Ka para o lado, correndo para fora.
“Atenção, pare imediatamente!” Os robôs
sentinelas saíram juntos em perseguição. As pessoas no elevador se apressaram
para fora na sequência, vendo o homem de meia-idade disparar em direção ao
corredor.
“Se abaixem!” Alguém gritou.
Todos no corredor estavam em pânico e a
câmera de vigilância instalada no teto lançou um prego de metal fino e pequeno
com um zumbido. O prego de metal abriu suas asas e disparou descontroladamente
para frente e para trás em pleno ar.
Com um grande estrondo, o objeto de metal
penetrou o crânio do fugitivo de meia-idade, atirando-o contra uma parede na
qual ele foi firmemente pregado.
O grupo de pessoas ficou inquieto; todos
falavam ao mesmo tempo. A-Ka estava coberto de suor gelado; de acordo com as
conversas que ouviu ao seu redor, aquele mecânico tinha obtido três avaliações
"D" hoje. Após comer sua última refeição, ele seria escoltado para
ser exterminado.
Os robôs sentinelas estavam limpando a
cena cruel e A-Ka aproveitou a oportunidade para prender a respiração e deixar
o corredor. Ele andou cada vez mais rápido até chegar ao fim e ali ele não
conseguiu se controlar e praticamente correu para dentro do banheiro. Ligando a
água fria, ele lavou o corpo tentando esfriar sua temperatura que insistia em
subir descontroladamente por causa da sua ansiedade. Em seguida, ele acalmou as
batidas violentas e frenéticas do próprio coração.
O corpo inteiro de A-Ka estava ensopado e
pingava água. Subitamente, o medo o envolveu em seu abraço; ele sabia qual
seria o destino final do mecânico - o cadáver seria levado para a fábrica e
congelado, então seria desmembrado e jogado em lotes na solução de decomposição
para ser corroído, desintegrando-se em nutrientes básicos que seriam usados
para criar novos clones ou ração animal.
A-Ka podia apenas sentir uma onda de
raiva e dor assolar seu coração; queria berrar descontroladamente, como se
fosse louco, mas não podia. Queria desabafar, mas nenhum lugar era seguro; havia
câmeras de vigilância por todo lado, ele sequer se atrevia a gritar. Com as costas viradas para a câmera de
vigilância, ele puxou do bolso da camisa o chip de navegação roubado e deu uma
olhada. O chip era como uma batata quente queimando sua mão, aterrorizando-o
com sua mera existência.
Ele precisava se livrar daquilo rápido...
quanto mais A-Ka pensava a respeito, mais medo sentia. Ele saiu do banheiro, se
secou e voltou para o alojamento.
Os humanos do Formigueiro iam e vinham,
cada um ocupado com seus próprios afazeres. Quando voltou para sua própria
seção, A-Ka finalmente respirou aliviado. Ele estava absolutamente exausto e
não conseguia fazer mais nada; este era apenas seu primeiro dia de trabalho.
Ele deu uma olhada em seu relógio; tinha
dez horas para descansar. Quando entrou no alojamento, alguém acenou para ele.
A-Ka retribuiu a cortesia com um sorriso duro.
“A-Ka-gege[2] voltou do
trabalho!” Uma criança gritou. “Como é a superfície?”
“O que achou do seu primeiro dia de
trabalho?” Uma pessoa jovem se aproximou lhe dando um tapinha no ombro.
A-Ka assentiu e disse, “Foi... foi tudo
bem.”
Dentre os que viviam ali, uma grande
parte era de pessoas mais jovens que A-Ka. O Formigueiro era dividido em
catorze mil seções e os operários de cada seção eram intitulados de
"Representantes Humanos". O comportamento do "Representante
Humano" na superfície afetava diretamente a qualidade de vida de toda a
seção. O restante dos humanos foi deixado para ser treinado por robôs; se
reproduzir em relativa privacidade; ou para aprender novas habilidades.
Da mesma forma, pessoas submetidas a
várias rodadas de testes, mas que não dominaram qualquer tipo de habilidade,
seriam consideradas não-contribuintes e o único fim que as esperava era a
execução.
O “D” que tinha recebido hoje pesava na
mente de A-Ka, bem como o fato de que seria processado em breve. O sistema
jurídico analisaria as gravações do seu trabalho e, se tivesse sorte, talvez só
recebesse um “B”, que não lhe daria e nem tiraria pontos. Mas se fosse um “D”,
a pressão sobre ele se tornaria muito forte.
Os jovens estavam sentados no salão
lendo. A-Ka se sentou de um lado, comendo em silêncio a refeição a ele
atribuída, quando viu uma criança muito pequena deitada ao lado da mesa o observando.
“Eu posso comer sua fruta?” A criança
perguntou.
A-Ka respondeu, “Claro.”
A-Ka entregou a fruta e assim que a
criança a recebeu, saiu correndo para compartilhar com o restante dos amigos o
presente especial que A-Ka havia lhe dado.
Num piscar de olhos, a voz eletrônica
transmitiu um aviso; a hora de dormir começou e os humanos que precisavam
descansar deveriam voltar para suas câmaras de dormir. Em seguida, A-Ka jogou
os pratos limpos na lata de lixo e voltou para sua câmara de dormir com o
coração cheio de ansiedade.
Cada humano tinha sua própria câmara de
dormir, este era o único espaço privado que existia no Formigueiro. A-Ka
configurou a transmissão relaxante para dormir antes de subir para sua própria câmara. O espaço era amplo e podia até comportar dois
A-Kas espremidos lado a lado. Ali havia até um pequeno vaso de planta verde.
Escureceu do lado de fora; a escotilha das
câmaras de dormir tinha se fechado.
A-Ka acendeu a luz de leitura e puxou o
envelhecido chip de navegação que havia roubado e trazido de volta. Este chip
era muito útil para A-Ka.
Ele queria dormir um pouco e não sair,
pelo menos não hoje. Somente dormir o faria esquecer temporariamente dos
problemas com aquele “D”. No entanto, depois que a transmissão para dormir
começou, A-Ka ficou lá deitado por um tempo, sua frustração aumentando enquanto
se virava de um lado para o outro, perdendo o sono.
Ele se forçou a fechar os olhos, mas não
conseguia dormir; ele não parava de pensar na entidade robótica que tinha
escondido lá embaixo, bem como no chip de navegação que roubou hoje. Depois de
meia hora, A-Ka se levantou, abriu sua câmara de dormir, e escapuliu.
No dormitório, fileiras e mais fileiras
de câmaras de dormir emitiam uma luz azul.
A-Ka deixou o local com passos rápidos, pressionando o sensor que
verificou sua digital e voltando para os alojamentos. Como de costume, o lugar
ainda estava cheio de humanos. A-Ka então entrou em um túnel de segurança e
seguiu descendo as escadas até o fim, se escondendo no canto de uma escada
antes da curva.
De repente, ele ouviu um barulho baixo
atrás de si, como se uma porta tivesse sido aberta.
Naquele instante, o sangue no corpo de
A-Ka pareceu congelar. Quem era? Ele inconscientemente queria se virar, mas se
forçou a suprimir aquele ímpeto.
Você não pode se virar,
A-Ka advertiu a si mesmo. Não havia sons robóticos, então não era um guarda.
Provavelmente era um humano vindo para fazer sabe-se lá o quê. A não ser que,
além dele, alguém mais tivesse descoberto esse túnel.
A-Ka ouviu o barulho da porta se fechando
e respirou aliviado. Somente então ele se atreveu a virar a cabeça e olhar: não
havia ninguém ali, mas ele ainda se sentia inquieto. Quando as câmeras de
vigilância se viraram em outra direção, ele permaneceu imóvel por três segundos,
disparando na sequência como uma flecha, rapidamente subindo a rampa de lixo.
A-Ka escorregou por toda a rampa até a
lixeira afastada dos alojamentos. O lixo
aqui era incinerado uma vez a cada seis horas e estava cheio de um cheiro
pungente de fumaça que ainda não havia se dissipado.
Ele rastejou para fora da rampa de lixo
por um buraco e desceu uma escada enferrujada, sendo recebido pela brisa do mar,
que soprou em seu rosto. O som das ondas era esmagador, quase o afogando.
Esse tipo de clima infernal... A-Ka
começou a se arrepender de ter saído hoje. Ele ainda estava imerso na ansiedade
dos recentes acontecimentos; será que mais alguém tinha descoberto esse túnel?
Mas como isso era possível? A lixeira estava abandonada há bastante tempo e
recentemente não havia nenhuma pegada nova...
A rampa de lixo levava diretamente à
baía, onde céu, terra e tudo mais estavam escuros como breu. Raios ligavam o
céu e o mar; o rugido das ondas e o agito das nuvens carregadas pareciam alertá-lo
para voltar o mais rápido possível.
Este não era um dia bom para partir.
Comparado à imensidão do céu e do oceano, A-Ka não era nada mais que um
pontinho preto rastejando cuidadosamente sobre um recife enquanto ia em direção
a uma caverna escondida próxima ao mar. Nesta gruta, ele tinha escondido um
robô. Agora mesmo, enquanto ia até lá, ele rezava incessantemente para que o
robô ainda estivesse ali quando chegasse; para que ninguém o tivesse levado
embora.
Se o sistema judiciário tomasse
conhecimento desse tipo de coisa, A-Ka sabia, sem sombra de dúvidas, que o
único destino que o aguardava era a execução. Mas desde que tinha dez anos e
sem querer descobriu a passagem na rampa de lixo que levava para o mundo
exterior, ele era incapaz de resistir a querer sair e respirar o ar lá fora.
Embora o ar fosse carregado com o cheiro
pungente de enxofre e a superfície do mar estivesse coberta por uma camada negra
de petróleo bruto, nada disso era capaz de impedir que o coração de A-Ka ansiasse
por liberdade. Ele usou os últimos seis anos para reunir suprimentos do
Formigueiro e um tanto de sucata de aço da rampa de lixo e, pouco a pouco, os
levou até lá.
No começo, ele queria apenas construir um
barco pequeno e deixar a Cidade das Máquinas em busca de um lugar em que
pudesse viver. Ele ouviu dizer que do outro lado do oceano ainda existia uma
nação na qual os humanos se reuniam. Lá, não existia um Computador Central
chamado “Pai” que controlava todo mundo; também não havia robôs que massacravam
cruelmente humanos a qualquer momento. Aquela era uma verdadeira nação
comandada por humanos.
A-Ka queria ir para aquele lugar, então
começou a usar seu conhecimento para reunir as peças necessárias para montar um
veículo capaz de levá-lo. No entanto, os materiais que tinha coletado eram
aleatórios e dos tipos mais variados, e no fim ele acabou montando um estranho
aparato mecânico que era como um robô.
A-Ka deixou um espaço no robô no qual
pudesse se sentar, fazendo com que fosse mais fácil pilotá-lo. Ele lhe deu o
nome de “K”. Em comparação com as técnicas intrincadas e complexas da Cidade
das Máquinas, que usava reatores nucleares para alimentar formas de vida de
aço, essa coisa chamada K parecia mais uma sucata.
Mas A-Ka tinha muito orgulho de sua
criação. Ao menos K não receberia ordens do “Pai” ou do sistema judiciário, e
não atiraria laser em humanos. O que quer que A-Ka lhe pedisse para fazer, ele
faria. Essa possibilidade de fazer um robô seguir ordens humanas deu a A-Ka um
enorme sentimento de realização.
Ele não podia evitar considerar K seu
único amigo; este era um segredo que guardou com muito custo. Ele não se
atrevia a contar para ninguém, mas esperava pelo dia que poderia pilotar K e ir
embora dali.
Mas, antes disso, ele precisava instalar
uma configuração em K que o permitisse extrair trítio da água do mar para
fornecer energia para o reator de fusão.
O interior da caverna estava escuro e
úmido, e o estrondo dos trovões e das ondas se agitando do lado de fora era
avassalador. Quando A-Ka adentrou a escura caverna, ligou a fonte de luz e
retirou a lona que cobria K. A concha de aço encarou A-Ka de volta.
K não era dotado de inteligência, mas
A-Ka planejava, um dia, ajudá-lo a alcançar inteligência básica.
Ele abriu a tampa frontal do peito de K e
instalou o chip de navegação que tinha roubado. Antes de testá-lo, ele o
conectou à fonte de alimentação e aguardou que o sistema de navegação
iniciasse.
Do lado de fora, o som dos trovões
aumentou e as ondas rugiram descontroladamente, como se algo estivesse batendo
fortemente contra a lateral da caverna, causando estrondos enormes.
A-Ka não podia esperar por K. Ele correu
pra fora com medo de que a água invadisse a caverna rochosa. Mas tão logo saiu,
um grande objeto foi pego pela onda violenta, sendo levado em direção à entrada
da caverna.
“Ah!” A voz de A-Ka foi abafada pelo
grande estrondo.
Naquele instante, ele viu algo brilhar na
água do mar e bater em várias rochas enquanto flutuava em direção à entrada da
caverna. Quatro ou cinco estalos altos ecoaram e aquilo caiu de algumas rochas
que tinham mais de dez metros de altura. Os vários sons abafados eram de um
objeto metálico batendo fortemente contra as rochas.
A-Ka estava encharcado da cabeça aos pés
pela água do mar e ainda não tinha se recuperado do choque. Ele se deitou de
bruços no topo da caverna rochosa e olhou para baixo, vendo um objeto metálico
e brilhante sendo arrastado pelas ondas negras. Parecia ser algo grande e
talvez tivesse alguma utilidade.
Todavia, A-Ka não se atrevia a descer
precipitadamente ou seria imediatamente varrido pelo maremoto.
Ele primeiramente desligou a fonte de
energia de K para evitar um curto-circuito e depois espiou ansiosamente de sua
posição próxima à entrada da caverna. As ondas diminuíram gradualmente,
permitindo que ele visse de maneira mais clara - era um baú metálico que
balançava na água, sendo empurrado vez ou outra em direção à costa pelas ondas,
antes de ser novamente puxado para o oceano pela maré.
A-Ka rezou aos céus para que deixassem
aquele baú metálico ali. O que poderia haver dentro? Talvez o próprio material
do baú pudesse ser transformado em um novo corpo robótico para K? Ou possivelmente
ali dentro estivesse o reator de fusão que ele tão desesperadamente precisava?
As ondas se acalmaram aos poucos,
enquanto o mar finalmente recuperava sua tranquilidade; a tempestade havia
passado.
Com enorme dificuldade, A-Ka desceu até a
praia, onde o petróleo negro cobria toda a superfície do mar. Ele deixou um
rastro de pegadas pela areia.
Uma onda empurrou o baú para a costa; ele
podia vê-lo!
A-Ka seguiu pela orla, correndo em
direção ao baú de liga de aço. Pouco antes, a vista que tinha de cima das pedras
não era precisa; foi só quando se aproximou que percebeu que não era um baú, mas
sim uma câmara de dormir.
A-Ka olhou para a câmara de dormir com
desconfiança, mas quando as ondas estavam prestes a varrê-la novamente, ele apressadamente
pulou no mar, fazendo uso de uma enorme quantidade de força para empurrá-la para
a costa.
“República... do Leão," A-Ka viu um
símbolo meio apagado em formato de leão no objeto metálico à sua frente.
Esta câmara de dormir era muito durável.
Seu exterior estava manchado de ferrugem e coberto de algas marinhas, ela
obviamente ficou à deriva no oceano por muito, muito tempo. Nela havia um buraco e seu interior continha
de petróleo bruto até a metade, cobrindo um cadáver.
A-Ka suspirou. Tendo ficado à deriva no
mar por tanto tempo, ele deveria estar apodrecido agora. Teria sobrado algo de
valor?
A-Ka puxou uma chave inglesa e tentou
forçar a abertura da câmara de dormir à frente de seus olhos, mas ela não se
mexeu nem um centímetro sequer. Ele ofegou ruidosamente enquanto tentava
abri-la e seus olhos de repente captaram uma linha de palavras na parte inferior
da câmara.
“Ano 7210, Quarto mês, Heishi[3].”
Ano 7210!
A-Ka ficou totalmente chocado; este era o
ano de 10073, então esta era uma câmara de dormir antiga de quase três mil anos
atrás?!
Ele a encarou por um bom tempo e percebeu
que não podia continuar enrolando daquele jeito. Então, começou a procurar pelo
disjuntor da câmara. A configuração desta máquina antiga era completamente
diferente de qualquer tecnologia que A-Ka conhecia.
A-Ka prendeu a respiração na expectativa
de ter encontrado uma joia de valor inestimável ou descoberto um novo mundo.
Pensamentos de tecnologias antigas instantaneamente inundaram sua mente: talvez
os antigos tivessem deixado para trás algum tipo de fonte de energia ou uma
arma. Em qualquer caso, mesmo que fossem apenas algumas placas de circuito, ele
encontraria alguma utilidade para elas...
A-Ka não sabia no que tinha encostado,
mas a câmara de dormir se acendeu por inteiro. Ele se assustou e correu para
trás, seus braços e pernas se agitando ao fazê-lo. Ele imediatamente pensou que
lá dentro não deveria haver ninguém vivo, pois tinham se passado quase três mil
anos.
A câmara de dormir se abriu lentamente e
A-Ka se aproximou, descobrindo que dentro havia outra camada. O espaço entre as
duas camadas da câmara estava cheio de petróleo bruto e água do mar, que se derramaram
para fora num instante e uma fumaça densa subiu na sequência. A camada interna
era transparente e nela apareceu o aviso de "bateria fraca".
A tampa da câmara se abriu e a névoa
escoou para fora, se dissipando.
Um homem completamente nu estava deitado
lá dentro. Seus braços e pernas eram proporcionais e ele tinha cerca de 1,80m;
seu cabelo era bem curto e preto. A-Ka olhou para ele atentamente e estendeu a
mão para tocar seu corpo.
Aquele homem ainda estava vivo.
✶✶✶✶✶
Notas de tradução:
[1] “Androides” são
robôs com aparência humanoide, enquanto “ciborgues” são uma mistura de peças
orgânicas e não-orgânicas. “Robôs” refere-se a qualquer máquina capaz de
realizar tarefas de maneira automática.
[2] Gege:
literalmente irmão mais velho. Eles não são realmente irmãos, é um honorífico
usado para se referir a primos ou homens da própria faixa etária ou mais velhos.
[3] Heishi:
literalmente “Pedra Preta”.
✶✶✶✶✶
estou ansiosa por mais! muito obrigada pela tradução maravilhosa, amo o vcs 😍😘❤
ResponderExcluir