Capítulo 05 - A Espinha Dorsal do Mundo
Era o sexto dia que A-Ka e Heishi
passavam caminhando na neve.
Seus arredores eram desolados e
inabitados. Eles primeiro passaram por um pequeno bosque de árvores e adentraram
uma enorme cordilheira.
A mochila de A-Ka já tinha sido
transferida para as mãos de Heishi, mas ainda assim A-Ka tinha pouco fôlego e
não conseguia suportar as viagens durante o dia. Quando se depararam com uma
fenda na cadeia de montanhas, ele ficou tentado a se largar nas costas de
Heishi e fazer com que este o levasse montanhas acima.
“Este é o cume do Astrolábio”, disse
A-Ka, “Jingchuan[1].”
Como sempre, Heishi ouviu com uma
expressão indiferente. Ao se sentarem de frente para o fogo, A-Ka terminou de
comer a raposa selvagem que haviam caçado. A carne era nojenta, cheirava mal e
não tinha sal, de modo que ele quase a vomitou enquanto comia.
“O Astrolábio é o mundo em que
vivemos,” A-Ka explicou para Heishi. “Um enorme astrolábio que guia outros
dezessete astrolábios menores. Cada continente é uma ilha individual e todos se
interconectam como engrenagens numa máquina”.
Heishi falou um "hmm"
indiferente e perguntou, “Já acabou de descansar?”.
“Não”, A-Ka falou um pouco
desamparado. “Eu te atrasei, sinto muito por isso.”
As palavras de A-Ka realmente vieram
do fundo do seu coração -- Heishi era extremamente resistente: não temia o
frio, tinha uma força extraordinária e era capaz de andar por um dia inteiro
sem descansar. É claro que, para compensar, ele comia muito. Afinal de contas,
ele era um humano de três mil anos atrás e, naquela época, os genes da espécie
humana eram da melhor qualidade. Por tal motivo, aquele período era conhecido
como Idade do Ouro. Heishi não era como A-Ka e o restante dos humanos da Idade
do Ferro Negro, que resistiam sob o controle das máquinas com suas
constituições frágeis.
Durante toda a jornada, A-Ka observava
Heishi na tentativa de descobrir exatamente o que ele era. Um dia, finalmente,
uma prova convenceu A-Ka que Heishi era, de fato, humano: excreção.
Se ele era humano, teria que comer e
certamente teria que excretar. Heishi era capaz de suar e, algumas vezes, tinha
vontade de tomar banho. Para tomar banho, ele tirava as roupas e ficava
completamente nu na neve, fazendo uso direto dela para limpar o próprio corpo.
Algumas vezes ele também excretava, mas na maior parte das vezes, ele evitava
A-Ka quando o fazia. Esse tipo de vergonha parecia ser inata.
Um dia, A-Ka assistiu Heishi de
longe. Heishi havia acabado de limpar o corpo e, depois de um banho simples, se
ajoelhou imóvel na neve. Sob a brilhante luz do sol, sua pele bronzeada o fazia
parecer a estátua perfeita de um deus antigo. Antes, A-Ka tinha visto apenas
pessoas agachadas ou sentadas. Esta era a primeira vez que via alguém se
ajoelhar enquanto urinava. Depois que ele saiu, A-Ka se aproximou para dar uma
olhada, mas acabou sendo arrastado de volta por Heishi e jogado na neve.
Até mesmo A-Ka sentiu que estava
agindo como um tarado e pôde apenas admitir sua derrota e fugir.
A-Ka pensou finalmente que, apesar de
Heishi ser temperamental e um pouco propenso à violência, no geral, ele era um
companheiro muito bom.
“Você já viu pessoas da Idade do
Bronze?”, perguntou A-Ka.
Heishi ergueu uma sobrancelha. A-Ka
percebeu que podia ter deixado o outro bravo e gaguejou uma explicação. “Eu não
pretendia... perguntar sobre o seu passado. Eu só tava curioso”.
“Não,” Heishi respondeu. “Eu não sei
o que é isso”.
“As Idades do Ouro, Prata, Bronze e
Ferro[2],” disse A-Ka. “São as quatro Eras da raça humana. Dizia-se
que antes da Idade do Ouro, havia uma raça humana original ainda mais antiga”.
Heishi ouvia em silêncio. Nestes últimos
dias, A-Ka de vez em quando lhe contava sobre algumas coisas e, embora
parecesse que Heishi não estava prestando atenção, A-Ka sabia que ele
provavelmente tinha absorvido tudo.
“Os humanos originais criaram tudo
neste continente”, falou A-Ka, “inclusive os computadores, as técnicas de
clonagem e inteligência artificial. Catorze mil anos depois, seus corpos
evoluíram para se tornarem cada vez mais fortes”.
Heishi disse, “E as gerações
posteriores os chamaram de Idade do Ouro”.
A-Ka assentiu. “Foi a era mais
gloriosa do homem. Eu não sei se ainda existem outros humanos da Idade do Ouro
como você, talvez no País Ideal ou na Confederação Popular de Curran”.
Heishi falou suavemente, “E daí se
existirem?”.
A-Ka replicou entusiasmado, “Talvez
eles possam te ajudar a descobrir sua missão”, ele apanhou um galho de árvore e
desenhou um mapa no chão. “Depois de Jingchuan, passando pela cadeia de
montanhas deste trecho aqui, chegaremos ao Estreito de Aijia. Talvez lá a gente
possa esperar por um navio que vá para Curran”.
Heishi falou sem rodeios, “Ou podemos
ser pegos pelos robôs e acabar mortos com tantos tiros que ficaremos parecidos
com uma colmeia. Esta é a sexta vez que ouço seus planos”.
A-Ka encolheu os ombros, desamparado.
De repente, a expressão de Heishi mudou sutilmente, como se tivesse ouvido
algo.
“Fique aqui", Heishi mandou,
enquanto erguia sua espada longa. Ele deslizou encosta abaixo, levantando neve
pelo caminho.
Os sons aumentaram ao ponto que até A-Ka
conseguia ouvi-los. Era o barulho de motores de aeronaves e de tiros de
metralhadoras, junto com os estridentes gritos de mulheres e brados assustados de
homens.
Os robôs os haviam alcançado! A-Ka
entrou em pânico. Ele seguiu o pequeno caminho para baixo, até um vale coberto
de neve. Ali, um grupo de humanos corria por suas vidas e tentava se esconder de
dois robôs sentinelas que pairavam em pleno ar, atirando enquanto os
perseguiam.
Do alto de um penhasco, uma silhueta
humana saltou. Era Heishi.
Heishi abriu os braços com sua espada
longa em uma mão e mergulhou de cabeça para baixo.
“Cuidado!”, bradou A-Ka.
Heishi não disse uma palavra sequer
enquanto pousava em uma das sentinelas. A máquina assassina que sobrevoava o
local deu uma guinada e os tiros mudaram de direção. Determinado, A-Ka despejou
todo o conteúdo de sua mochila, que caiu fazendo barulho. De cabeça erguida,
suas mãos se moviam rapidamente enquanto ele montava o gerador de campo
magnético.
Os fugitivos correram em direção à
encosta da montanha. Heishi pressionou uma das sentinelas para baixo, como se
controlasse uma ave de rapina particularmente difícil de domar. Assim, o robô
sentinela acabou colidindo com a montanha. O segundo robô virou a cabeça e voou
na direção de Heishi, abrindo sua escotilha armada e mirando, pronto para
atirar.
Com um "click", A-Ka
encaixou o último parafuso da cobertura externa do gerador de campo magnético e
enrolou uma corda ao redor do objeto. Rapidamente amarrando um nó, ele pegou a
outra ponta da corda e girou em círculos sobre sua cabeça, arremessando-a.
Piscando com uma cor cinza metálica,
a caixa eletrônica voou alto com um zumbido. Ao sentir um objeto metálico nas
proximidades, ela voou em direção ao robô sentinela e, com um som suave, se
grudou ao corpo dele.
Logo em seguida, a luz azul do campo
magnético irradiou. Quando o motor antigravidade da segunda sentinela parou de
funcionar, Heishi virou o corpo e se impulsionou, saltando em direção à encosta
íngreme. O robô então colidiu ruidosamente com o penhasco. Parte da cordilheira
desabou, causando uma avalanche.
“Corram, rápido!” A-Ka gritou.
Heishi foi varrido pela neve montanha
abaixo e os humanos correram em direção a uma área mais elevada. As duas
sentinelas chiavam com eletricidade e explodiram, iniciando outra reação em
cadeia, que fez com o que o chão fosse encoberto pela neve. As montanhas
erguiam-se altas, refletindo a luz do sol. Depois das explosões capazes de
derrubar o céu, o mundo voltou a ficar em silêncio.
“Cof...cof...ah!”, A-Ka tossia
enquanto cavava com enorme dificuldade para sair de baixo da neve. Heishi
rastejou apressadamente até ele e o ergueu pela gola com uma mão, arrastando-o
para fora da área coberta de neve.
Um por um, os humanos fugitivos também
cavaram seu caminho para fora da neve. Tendo escapado com vida por tão pouco, eles
ainda estavam em estado de choque.
A-Ka acenou com a cabeça na direção
deles, vendo que sete haviam saído de baixo da neve - duas mulheres, quatro
homens e uma garotinha.
Todos sentaram-se sob a luz do sol no
campo de neve; todos exaustos além da conta.
“Quando vocês fugiram?”, uma mulher
perguntou a A-Ka.
“Sete dias atrás”, ele disse. “Eu me
chamo A-Ka, ele é Heishi”.
“Obrigado”, um homem disse
agradecido. “Esses dois nos perseguiram por todo o caminho...”
Heishi falou indiferente, “Eu apenas
me protegi”.
A-Ka ficou um pouco envergonhado e
sorriu. “Não fale assim. Somos todos humanos e deveríamos nos ajudar.”
As pessoas reunidas começaram a
sorrir, mas Heishi se afastou. Um pouco distante dali, alguns homens cavavam na
neve.
“Amigo! Venha nos ajudar!”, um homem
gritou de longe. “Ainda tem alguém aqui, temos que tirá-lo!”
A-Ka se aproximou e se abaixou para
olhar, mas depois que ajudou a desenterrar a pessoa, ele ficou paralisado.
Era um clone.
O rosto do clone estava coberto com
lascas de gelo. Conforme cambaleava para se colocar de pé, o punho de um humano
que estava parado ao seu lado acertou em cheio seu rosto.
“Você mentiu pra nós!”, disse o homem
furioso.
“Ei! Espera! Ele tem algo a dizer!”,
A-Ka ficou muito assustado ao ver que o clone foi logo empurrado de volta ao
chão.
Os homens os cercaram. Alguém empunhava
uma arma e a pressionava contra a cabeça do clone enquanto falava friamente,
“Por que você mandou um sinal para as sentinelas?”.
“Eu não mandei!”, respondeu o clone
com raiva.
O líder rugiu furioso, “Você contatou
os soldados! Você queria que eles nos pegassem!”.
O clone disse, “Eu só queria ouvir as
novidades do quartel-general...”.
A-Ka falou, “Não seja tão... primeiro
vamos ouvir o que ele tem a dizer”.
“Mano, isso não tem nada a ver com
você”, o líder estendeu o braço para bloquear A-Ka e afastá-lo. A-Ka tropeçou e
deu alguns passos para trás. Inicialmente, Heishi apenas ficou parado de lado,
observando a garotinha que viajava com o grupo. Neste momento, no entanto, ele repentinamente
sentiu a tensão e se virou, caminhando naquela direção.
“O que foi?”, Heishi perguntou
friamente.
Todos observavam Heishi e seus olhos
correram para a mão dele, que segurava uma espada longa. Ninguém se atreveu a
falar.
O líder disse, “Eu sou Tapp”.
Heishi acenou com a cabeça. A-Ka
indicou que eles primeiramente deveriam soltar o clone. Em seguida, ele
perguntou para o grupo, “O que ele fez de errado?”.
Tapp falou para Heishi, “Durante
nossa jornada, nós gentilmente o acolhemos, mas ele se atreveu a enviar um sinal
em segredo para o esquadrão de sentinelas enquanto viajava com nosso grupo...”.
O clone respondeu furioso, “Eu não
mandei! Fui eu que fui gentil e os ajudei a escapar da Cidade das Máquinas! Eu
só queria ouvir as notícias do quartel-general! Podemos até ignorar que eles
quebraram meu transceptor, mas eles até mesmo esqueceram a dívida que tinham
comigo e tentaram me matar! Seus humanos ingratos...”.
Naquela situação de emoções intensas,
o clone quis lutar com Tapp, mas foi impedido pelo grupo de homens.
“O que ele usou para entrar em
contato com os robôs?”, A-Ka perguntou para Tapp.
Tapp se virou, fazendo um gesto, e
outra pessoa trouxe um transceptor de sinal elétrico.
Após dar uma olhada, A-Ka explicou,
“Esse aparelho só consegue receber, e não transmitir mensagens. Ele não enganou
vocês”.
“Mas também foi ele quem atraiu os
robôs sentinelas”, falou um homem relutante. “Ele tava recebendo uma mensagem
quando o sinal foi rastreado”.
A-Ka falou pacientemente, “Se ele não
consegue enviar sinais, quer dizer que as sentinelas não têm como rastrear a
origem do sinal, logo, eles não podem ter sido atraídos por ele”.
O clone os observava e todos se sentiram
bastante envergonhados. Depois de um momento de silêncio, Tapp disse, “É muito
perigoso levar ele com a gente, vamos matá-lo”.
“Pessoal!”, o clone mal conseguia
acreditar, mas A-Ka os interrompeu. “Esperem! Por que vocês precisam matá-lo?”
Tapp disse, “Os clones não estão do
nosso lado. Quem sabe que truques ele tem nas mangas?”.
A-Ka falou irritado, “Vocês não podem
matá-lo!”.
Ele olhou na direção de Heishi, mas este
não tomou posição. Tapp e os outros pareciam estar um pouco temerosos em
relação aos dois e finalmente A-Ka disse, “Entregue-o pra mim, quero fazer
algumas perguntas”.
A-Ka estendeu a mão e o clone a segurou,
usando-a para se colocar em pé. A-Ka se afastou com o clone e Heishi.
“Espere!”, Tapp gritou de trás.
“O que mais você tem a dizer?”, A-Ka
se virou e perguntou.
Tapp mediu os três, quase como se
estivesse avaliando a capacidade de luta de Heishi e A-Ka. Ele finalmente
pareceu desistir de algum plano, dizendo: "É melhor tomarem cuidado com esse
cara”.
“Obrigado pelo lembrete”, respondeu
A-Ka.
A noite caiu. A-Ka, Heishi e o clone
acomodaram-se em uma caverna. Eles acenderam uma fogueira e o restante dos
humanos permaneceu no vale para descansar temporariamente, deitando-se em
locais abrigados do vento.
“General Libre morreu”, disse o
clone. “A revolução falhou e Pai está reconstruindo a Cidade das
Máquinas. Ele também enviou sentinelas para rastrear os humanos e meus
companheiros clones que conseguiram escapar”.
Esta era realmente uma notícia
ruim. A-Ka perguntou, “Que novidades você
tem do quartel-general?”.
“Você parece saber bastante das nossas
operações”, o clone disse casualmente. “Os humanos que participaram da operação
‘Morte ao Pai’ não chegavam a dez. Como você sabe?”.
A-Ka disse, “Foi por acaso. Então,
eles perderam?”.
“Ainda não”, o clone olhou de relance
para Heishi. “O quartel-general mandou as tropas feridas fugirem pelo estreito
de Aijia para Andoria. O objetivo é formar uma aliança com os humanos de Curran
antes de pensar em planos para contra-atacar.”
A-Ka refletiu profundamente e anuiu.
Heishi perguntou, “Todas as pessoas
na Cidade das Máquinas morreram?”.
O clone suspirou e disse, “Bem, isso
não pode ser considerado um fracasso total.
Pelo menos agora, Pai vai precisar de, no mínimo, dez anos para
se consertar. Nossas principais tropas conseguiram nos comprar um bom tempo, afinal”.
“O que é Andoria?”, Heishi perguntou
friamente.
“O país dos clones”, respondeu o recém-chegado.
“Lá, vivem três dos nossos ancestrais originais. Inicialmente, nós, clones,
tínhamos quatro ancestrais, mas muitos anos atrás, um deles acabou se
envolvendo num esquema. Quando o plano falhou, ele foi capturado por Pai.
Foi ele quem ficou na Cidade das Máquinas e instigou os clones a se rebelarem,
dando início a esta guerra.”
A-Ka suspirou. As palavras do clone
revelaram uma peça importante de informação - por ora, eles continuavam em
perigo.
Enquanto mexia repetidamente no
pequeno dispositivo mecânico, o clone disse cansado: "Não consigo me
conectar com o quartel-general. Aqueles humanos idiotas quebraram o
transceptor". Ao dizer isso, ele percebeu que A-Ka e Heishi também eram
humanos. “Desculpa, não estava falando de vocês.”
A-Ka assentiu e perguntou, “Por que
você não tem um número de série?”.
“Quando a revolução começou, todos os
clones deixaram de reconhecer o número de série dado pelo governo. Nós nos
demos nomes únicos,” disse o clone. “Meu nome é Feiluo”.
“Eu me chamo A-Ka”, ele respondeu,
acenando com a cabeça na direção alheia.
“Heishi”, disse o outro.
Com a inclusão de Feiluo ao grupo,
A-Ka finalmente não tinha que enfrentar diariamente a parede de pedra que era
Heishi. Quando se levantaram no dia seguinte, o outro grupo se aproximou para
perguntar se A-Ka se juntaria a eles ou não. E foi assim que o pequeno grupo de
A-Ka, de apenas três integrantes, se juntou ao grupo de humanos fugitivos.
Eles atravessaram rios e montanhas em
direção ao Estreito de Aijia, na esperança de cruzar o oceano rumo a um novo
continente.
De todos os clones com quem A-Ka já
havia interagido, Feiluo era o que tinha melhor temperamento. Ele era
extremamente educado com Heishi, que, por sua vez, nunca o tratou como tratava
A-Ka.
“Obrigado por me salvarem",
disse Feiluo repentinamente em um dia em que estavam na estrada.
“Não foi nada.” A-Ka ainda tinha
certa simpatia pelos clones como um todo; afinal, quando ele e Heishi fugiram
da cadeia, foram os clones que os salvaram. Se não tivessem se aliado aos
clones naquele momento, definitivamente teriam morrido na Cidade das Máquinas.
“Agora eu entendo”, Feiluo disse de
maneira emocional, “para mudar esse mundo, ainda dependemos completamente dos
humanos”.
A-Ka meio murmurou, “Humanos, huh?”.
A revolução dos clones, na verdade,
foi iniciada por humanos e isso estava um pouco além das expectativas de A-Ka.
Mas, depois de pensar sobre o assunto cuidadosamente, parecia bastante
razoável. Humanos eram ricos em emoções e pensamentos complexos, algo que os
seres de aço eram incapazes de alcançar. Porém, justamente em razão dessas
emoções e pensamentos complexos, humanos dificultavam a vida de seus
semelhantes e oprimiam outras espécies. Quando os Criadores dotaram os humanos
de inteligência, foram também impiedosamente deixadas inúmeras falhas.
As mudanças no mundo eram ocasionadas
pelos humanos. Portanto, era provável que, quando o mundo foi criado, os
Criadores já tivessem colocado o eixo da Bússola nos seres humanos e lançado as
outras partes no mundo vasto e desconhecido.
Os humanos se diferenciavam uns dos
outros por milhares de pequenos modos e cada pessoa era um ser único neste
vasto mundo. No fim, até mesmo os clones perseguiam esse ideal de
individualização. Assim como Feiluo, eles se dariam um nome, usariam seus casacos
do avesso e colocariam um pedaço de palha no chapéu, de forma a mostrar que
eram diferentes de todo mundo.
“Uma vez, eu ouvi um companheiro
clone dizer que isso era o despertar do meu próprio 'eu',” Feiluo disse para
A-Ka. “Cada um de vocês, humanos, tem consciência do ‘eu’, mas nós não temos. Por
isso, nós primeiro precisamos despertar essa autoconsciência antes que a
revolução possa realmente começar.”
“Então qual você acha que é o
conceito de 'eu'?”, A-Ka perguntou curioso.
Feiluo balançou a cabeça. “É difícil
dizer, mas posso afirmar uma coisa - eu não sou o mesmo de antes.”
A-Ka instintivamente sentia que esse
assunto era profundo e de difícil compreensão. Todas as pessoas são dotadas de
autoconsciência; são individualizadas; do adulto mais velho até a criança mais
nova... Ele olhou para o grupo de humanos e viu a única criança, que seguia
Heishi curiosa, fazendo um monte de perguntas. Vez ou outra Heishi acenava em
concordância ou balançava a cabeça negativamente. Mas, na maior parte do tempo,
ele ficava em silêncio, apenas observando a garotinha.
“Crianças são criaturas misteriosas”,
avaliou Feiluo. “Assim que nascemos, nós, clones, já temos a forma adulta e não
experimentamos nenhum tipo de infância. A infância deve ser uma época muito
feliz da vida de um humano.”
A-Ka disse, “Eu já não consigo me
lembrar bem da minha infância, então não parece que ela foi assim tão feliz”.
Heishi carregava a garotinha em suas
costas enquanto seguia em frente. A-Ka andava ao lado dele, gentilmente
provocando a menina.
A-Ka: “Qual seu nome?”.
“Ann”, respondeu a garota
timidamente.
A-Ka sorriu e respondeu, “Ann,
aguente firme, vamos encontrar esperança”.
A garotinha concordou com a cabeça.
Dia após dia, do raiar ao pôr do sol,
eles seguiam por uma longa estrada sem fim. Era bastante difícil viajar pelas
montanhas cobertas de neve. Eles não conseguiam encontrar comida e todos
sentiam desespero e frustração. Apenas A-Ka insistia em usar o gerador de campo
magnético para montar armadilhas e, vez ou outra, conseguia pegar alguns
pássaros e até mesmo um cabrito-montês.
Ele entregou a comida à garotinha e à
mulher. No início, Heishi achava aquilo muito estranho, mas depois acabou se
acostumando ao jeito de A-Ka fazer as coisas.
Quando todos já mal conseguiam se
aguentar, guiados por Feiluo, finalmente deixaram a região nevada para trás e
chegaram a uma extensa pradaria. Se seguissem em frente, alcançariam a costa do
mar interior no lado oeste do continente.
A jornada havia durado quase meio ano
e, quando o grupo estava praticamente drenado de energia, finalmente se deparou
com a aurora. As roupas de todos estavam em farrapos e as de Heishi eram as
mais detonadas. Na jornada até ali, era sempre ele quem liderava, abrindo
caminho para os outros através de arbustos espinhentos. A camiseta de Heishi
havia sido reduzida a algumas tiras de pano, de modo que ele apenas a amarrou à
cintura e passou a circular com o tronco nu.
Durante o trajeto, Feiluo foi picado
por uma cobra venenosa ao salvar a garotinha. Felizmente, ele era um clone e
não foi afetado pelas toxinas.
A-Ka também estava totalmente
esgotado e envergonhado. Suas roupas estavam irremediavelmente em farrapos e as
tiras de couro de sua bolsa tinham se partido. Ele não teve escolha senão pegar
duas faixas da roupa de Heishi e amarrá-las em volta de seu corpo.
Na jornada, duas pessoas ficaram
doentes e morreram. A-Ka foi incapaz de ajudar e pôde apenas incentivar os
demais a seguir em frente. Pior ainda, uma das pessoas que morreu era a mãe da
garotinha Ann.
Por todo o caminho, Ann continuou a
perguntar para onde sua mãe fora e Feiluo respondia que ela havia ido na frente
para explorar o caminho. Ann não chorou nem criou problemas, e eventualmente se
afastou do grupo de humanos, juntando-se ao pequeno grupo de A-Ka.
Eles estavam em uma extensa planície,
o lugar mais antigo no coração do Astrolábio; fazia fronteira com as montanhas
nevadas e com as florestas virgens abaixo delas, separando a Cidade das
Máquinas e a região da costa oeste. A região se chamava “o Coração Primordial”.
Antigamente, este lugar era conhecido como “o Laboratório dos Criadores”,
apenas porque havia grande diversidade de espécies nas planícies. Na
pré-história, quando tiranossauros devastavam as pastagens, nem mesmo as tropas
mecânicas eram capazes de fazer algo a respeito.
Construir linhas de abastecimento era
muito demorado e difícil. Por isso, e muitos anos atrás, quando os humanos
fugiram da Cidade das Máquinas após a revolução, eles chegaram à costa oeste e
puderam apenas lentamente construir suas habitações, chamando-as de “Aliança
Rebelde”.
Mas tudo era apenas temporário. Todos
sabiam que, cedo ou tarde, as tropas mecânicas de Pai chegariam e
ocupariam toda a costa oeste. Eles somente sobreviveriam se deixassem para trás
este continente e navegassem pelos mares em direção aos distantes países do outro
lado.
Os humanos que viviam no limite do
Coração Primordial tinham que estar sempre atentos aos ataques das criaturas
pré-históricas e às tropas mecânicas do ainda mais distante Continente Leste.
Todos os dias eram passados em medo angustiante e em um constante e
interminável estado de ansiedade.
No Formigueiro, A-Ka já tinha ouvido
lendas sobre esse lugar. Naquela época, ele acreditava ser impossível chegar
até ali, e mais ainda seguir para outro continente ao leste. Depois de passar
por tanta coisa, ele aos poucos começou a perceber quão risível era sua ideia
de pilotar K através do grande oceano à procura do lendário País Ideal.
Feiluo disse, “Depois de
atravessarmos essa fronteira, à nossa frente, estará a Cidade Martha[3]”.
O grupo, totalmente coberto pelo pó
da estrada, parou em uma encosta e olhou para baixo. Ninguém falou por um bom
tempo.
As planícies se estendiam de uma
fronteira à outra por centenas de quilômetros até onde a vista alcançava; o
local estava repleto de humanos. As pessoas estavam sentadas, deitadas ou
aglomeradas em frente a uma cerca de arame, aguardando que a Cidade Martha os
recebesse. A cerca de arame era como uma fronteira entre países; no limite de
suas últimas esperanças, afastava impiedosamente os que tentavam se aproximar.
A-Ka nunca esperou que ali houvesse
tantas pessoas. Em uma primeira olhada, podia-se contar algumas dezenas de
milhares.
Desde o dia da revolução na Cidade
das Máquinas, provavelmente vários humanos escaparam da prisão que era o País
de Aço. Cada um seguiu seu próprio caminho, espalhando-se por todos os cantos
do continente. A-Ka acreditava que seu grupo, que havia pego um atalho ao
atravessar as altas planícies, estaria praticamente na dianteira dos fugitivos.
No entanto, ele não esperava que houvesse tantas pessoas sem alojamento e sem
lugar para descansar.
“Deixa a gente entrar!”, gritavam os
humanos aglomerados em frente à cerca de arame.
Atrás deles, estava um grupo de
soldados da resistência, que trajavam uniforme de batalha e seguravam armas ao
encarar o grupo de refugiados.
A-Ka observou de longe, com o rosto
totalmente confuso.
“O que faremos?”, perguntou A-Ka.
Heishi deu de ombros, parecendo
totalmente despreocupado enquanto seu olhar varria a planície.
Feiluo disse, “Não se preocupe, eu
vou tentar negociar”.
Os humanos na planície haviam se
reunido em grupos. Logo anoiteceria; no inverno, os dias eram curtos, as noites
longas e o vento extremamente frio. Feiluo guiou a garotinha, A-Ka e o restante
do grupo para perto da cerca de arame. Atrás da cerca, o soldado insurgente
imediatamente apontou a arma para eles e perguntou desconfiado, “Quem é?”.
Uma luz forte brilhou, pousando no
rosto dos presentes. Feiluo usou o dedo para afastar seus cabelos sujos,
revelando sua testa e um par de olhos azul índigo.
“Sou um de vocês”, disse Feiluo, “da
sétima tropa”.
“A sétima tropa foi extinta!”, disse
o outro. “Todos os irmãos morreram na Cidade das Máquinas!”
Feiluo ficou em silêncio por um
momento. Dos quatro cantos, aproximaram-se alguns soldados armados, que
ergueram seus capacetes revelando cada qual os próprios olhos índigos. Todos
eram clones.
“Tem humanos aí?”, A-Ka perguntou.
“Eu tenho algo a dizer; nós escapamos da Cidade das Máquinas”.
Um dos clones respondeu, “Todos aqui
são refugiados da Cidade das Máquinas. Isso não é nada incomum; espere aí
fora”. Ele então usou o cano da arma para apontar para Feiluo. “Você. Você é um
de nós; pode entrar”.
Feiluo falou para A-Ka e Heishi,
“Esperem por mim aqui. Ann, nós vamos na frente”.
O pequeno portão da cerca aramada se
abriu minimamente e Feiluo fez com que Ann entrasse primeiro. Ann estava um
pouco assustada e virou a cabeça para trás para olhar para os que ficaram.
Heishi agiu diferente de seu usual comportamento frio e, em vez disso, lhe
disse algumas palavras de conforto. “Vá,
você vai estar em segurança.”
Os acontecimentos deixaram algumas
pessoas descontentes e elas começaram a gritar. Feiluo se espremeu para o outro
lado da cerca e acenou com a cabeça na direção de A-Ka, indicando que ele
deveria permanecer calmo. Em seguida, ele pegou Ann e ambos sumiram em meio à
escuridão da noite. A-Ka foi esmagado pelas pessoas atrás de si até um ponto em
que não podia mais suportar e se virou na esperança de encontrar um espaço no
qual pudesse se sentar. Todavia, ele era incapaz de dar um passo sequer. No
fim, Heishi o agarrou pela gola e o arrastou dali.
O restante do grupo se sentou em um
espaço vazio, observando as lâmpadas de xenônio acima da cerca de arame, as
quais transformavam a noite em dia com a sua luz. Tapp e os demais ainda
estavam ao lado de A-Ka.
Tapp falou de maneira desdenhosa,
“Aquele clone com certeza não vai nos deixar entrar”.
“Eu acredito que vai”. Em sua mente,
porém, A-Ka tinha outro pensamento, mas não o disse em voz alta. Ele sentia que
Feiluo salvaria ele e Heishi, mas talvez não fizesse o mesmo em relação aos
temporários companheiros humanos. Afinal, Tapp e o restante do grupo
originalmente queriam matar Feiluo.
De longe, vieram rugidos de criaturas
pré-históricas. Sob o véu da escuridão, as profundezas das planícies pareciam
esconder inúmeros e desconhecidos perigos.
A longa noite chegara e o céu
brilhava como um rio estrelado, enquanto as planícies mergulhavam em um sono
profundo.
A-Ka despertou assustado de seus
sonhos e olhou ao redor.
“Venha comigo”, disse um clone em voz
baixa para A-Ka. “Não acorde os outros”.
“E Heishi?”, indagou A-Ka.
O clone perguntou confuso, “Quem?”.
“Heishi!”, A-Ka descobriu que Heishi
não estava ao seu lado. Esta era a primeira vez que Heishi o deixara desde que
saíram da Cidade das Máquinas. A-Ka imediatamente se sentiu ansioso enquanto
gritava, “Heishi!”.
“Shh...” o clone rapidamente cobriu a
boca de A-Ka e falou em voz baixa, “Não acorde os outros, venha comigo!”.
“Meu amigo...”.
“Essa é uma ordem do Tenente Coronel
Feiluo! Se tiver algo a dizer, espere até vê-lo!”
A-Ka parou de resistir e, ainda
atordoado, foi levado até a cerca de arame. Uma pequena brecha se abriu e o
permitiu passar. O clone acenou com a cabeça para o guarda e disse: “É ele”.
O clone levou A-Ka até a entrada de
um depósito e ele não pôde evitar ficar receoso. O clone então disse, “Logo
Feiluo estará te esperando aqui fora. Vá em frente, pode entrar”.
A-Ka cerrou os dentes e adentrou o
depósito, descobrindo que o local tinha sido transformado em um vestiário com
duchas. Àquela altura, sua mente finalmente tinha clareado e ele entendeu que o
estavam deixando tomar um banho. Depois de viajar por tanto tempo, seu corpo coçava,
causando-lhe extremo desconforto e ele estava coberto de lama. Agora, ele
finalmente tinha a chance de tomar um bom banho.
A-Ka ligou a água quente e o
vestiário foi preenchido de vapor. Quando a água quente correu por sua pele,
uma sensação de alívio o atingiu da cabeça aos pés. No vestiário tomado pelo
vapor, ele avistou uma silhueta.
“Heishi?”, A-Ka perguntou
alegremente.
Heishi parou ao lado, despiu-se e
também se pôs a tomar banho. Ele virou a cabeça e mediu A-Ka, que se sentiu
inquieto sob o olhar alheio e se afastou abrindo espaço entre eles. Ele já
havia visto o corpo de Heish diversas vezes, então não lhe era estranho. Porém,
esta era a primeira vez que ele tinha seu próprio corpo avaliado por Heishi.
O cabelo de A-Ka estava encharcado e
água pingava sem parar enquanto ele sorria para Heishi. “Isso é ótimo, eu
pensei que você...”.
Heishi encarou A-Ka em silêncio.
“Obrigado por ter cuidado de mim”,
Heishi disse de repente.
A-Ka não esperava ouvir aquilo, mas
sorriu e disse: “Foi você quem me protegeu...”.
De repente, Heishi estendeu a mão e
puxou A-Ka para um abraço.
Naquele momento, o coração de A-Ka
começou a bater violentamente. Em meio ao vapor, ele se aninhou contra o peito
nu e musculoso de Heishi, sentindo a poderosa batida do coração e o calor
alheios.
“Você...”, A-Ka de repente teve um
mau pressentimento.
Heishi apenas o abraçou por um breve
instante antes de soltá-lo. Ele cobriu a orelha de A-Ka com uma mão e o olhou nos
olhos.
“Obrigado”. Os olhos de Heishi eram profundos,
como obsidiana negra que permaneceu escondida sob a terra por milênios,
brilhando com uma luz hipnotizante. “Daqui em diante, se cuida.”
“Heishi?”, A-Ka perguntou.
Heishi enxugou a água do rosto,
virou-se para secar o corpo, vestiu suas roupas e saiu.
“Heishi!”, A-Ka vestiu suas roupas
apressado e o seguiu, mas Heishi já estava uniformizado como os clones e se
afastava rapidamente. Naquele momento, A-Ka vagamente pareceu perceber algo.
“Espera!”, A-Ka correu ansioso atrás
de Heishi, indo parar em um local cheio de pessoas, onde também estava Feiluo.
“Rápido! Entre no navio!”, Feiluo
aguardava do outro lado do cais, onde várias pessoas se alinhavam. Os arredores
estavam silenciosos e tranquilos, mas no cais, brilhavam intensas e cegantes luzes.
Várias pessoas viraram a cabeça para trás para olhar, pois, no silêncio da
noite, a conversa entre eles soava bastante clara.
“Já acabou de se despedir de A-Ka?”,
perguntou Feiluo.
Heishi assentiu em direção a Feiluo e
o entendimento tácito entre os dois imediatamente confirmou muitas das suspeitas
de A-Ka. Ele então perguntou, “Você vai ficar?”.
Feiluo explicou, “Ele ainda tem
coisas a fazer e me disse para te enviar na frente. Venha cá... não fale...”.
“O que ele vai fazer?”, A-Ka
perguntou incrédulo.
Feiluo não respondeu e apenas guiou
A-Ka em meio à multidão. A complexa expressão de Feiluo estava claramente
desconfortável. A-Ka perguntou, “É porque apenas uma pessoa pode ser enviada
que ele voluntariamente escolheu ficar...”.
“Não! Não é isso!”, Feiluo se
apressou em responder. “A-Ka, não faça mais perguntas. Confie em mim, Heishi
está apenas...”.
Independentemente de qual fosse o
motivo, A-Ka não conseguia se acalmar e respondeu, “Eu o tirei do mar, como
posso deixá-lo pra trás agora? Eu preciso ir com ele, senão eu não vou!”.
Enquanto conversavam, Heishi
finalmente não aguentou mais e perguntou, “Por que se importa tanto comigo?”.
A-Ka suspirou, logo ficando com
raiva. Há pouco, ele tinha ficado comovido com as ações de Heishi, mas agora,
assim que ouviu aquelas palavras, ele não queria mais se importar.
“Hunf, não é da sua conta”, A-Ka
falou maldosamente. “Tanto faz, você decide. Se quiser ficar, fique.”
Feiluo começou a sorrir quando Heishi
falou para A-Ka, “Tem algumas coisas que preciso resolver. Se o destino quiser,
nos encontraremos de novo”.
O coração de A-Ka foi mais uma vez
até a boca enquanto ele olhava para Heishi e tentava decifrar, pela sua
expressão, se ele estava mentindo. De longe, a balsa soltou um apito, quebrando
o silêncio constrangedor que pairava sobre os três. Feiluo falou apressado,
“Está na hora de embarcar. Venha, Percy!”.
Feiluo trouxe um garotinho para
perto. Por causa da escuridão da noite, A-Ka não conseguia ver o rosto da
criança com clareza e pôde dizer apenas que ele era um pouco menor que o
próprio A-Ka.
“Este é Percy. Percy, este é A-Ka.”
Feiluo os apresentou e explicou, “A-Ka, vou deixar Percy aos seus cuidados.
Quando chegar à Cidade Fênix, por favor, leve-o para um orfanato humano”.
A-Ka sentia-se confuso, mas como
Feiluo estava lhe confiando aquela criança, ele a segurou pela mão. Feiluo
disse, “Rápido”.
Feiluo os levou pra o interior do
navio por meio de uma pequena passagem lateral. A-Ka olhou para o lado e viu
que Heishi ainda estava sozinho sob os holofotes do cais.
“Vamos nos encontrar de novo?”, A-Ka
perguntou de repente.
Heishi ergueu a cabeça e olhou para ele,
antes de se virar e partir em silêncio.
Esse cara... o coração de A-Ka estava
tomado por sentimentos confusos, mas ele não sabia o que devia dizer. Depois de
um curto silêncio, ele retirou um chip do bolso da camiseta. Aquele era o chip
que o velho prisioneiro lhe havia dado quando ele e Heishi fugiram da Cidade
das Máquinas. O velho havia encarregado A-Ka de levar o chip ao acampamento
rebelde e entregá-lo ao General Libre.
Mas a revolução havia falhado e A-Ka
não fazia ideia a quem deveria entregar o objeto. Talvez o chip pudesse servir
de lembrança para Heishi, ou talvez Heishi pudesse decodificar seu conteúdo e
entregá-lo à pessoa certa.
“Me ajude a entregar isso pro
Heishi”, disse A-Ka naturalmente, “Como uma lembrança”.
Feiluo o pegou, guardando-o com
segurança.
A-Ka puxava a mão da criança enquanto
eram levados para os níveis inferiores do navio. Aqui, estavam espremidos
muitos humanos que haviam escapado. Depois que Feiluo lhes indicou um espaço
atrás de uma pilha de caixas, eles ali se acomodaram. Com um joelho apoiado no
chão, Feiluo disse a Percy: "Percy, o papai vai embora”.
“...”, os olhos de A-Ka estavam
arregalados de espanto e ele não se atreveu a falar.
Ele estava realmente mandando o
próprio filho para um orfanato?!
Percy estendeu os braços e abraçou o
pescoço de Feiluo, certamente já com saudades. Depois de um longo tempo, Feiluo
suspirou, afastando a mão de Percy e dizendo, “Escute e faça o que A-Ka-gege
mandar. Quando tudo acabar, papai vai até a Cidade Fênix te encontrar”.
Depois de ouvir isso, A-Ka finalmente
conseguiu relaxar um pouco. Ele perguntou para Feiluo, “Heishi também vai vir,
certo?”.
Feiluo respondeu, “Ele vai. Que os
bons ventos os levem”.
Feiluo deixou o porão do navio, seus
passos gradualmente se distanciando. A grande embarcação, carregada de
imigrantes humanos, já tinha partido deixando parta trás o Continente Central e
seguindo em direção às ilhas desconhecidas.
Sob a luz da lua, A-Ka ainda estava
preocupado com Heishi. Desde o dia em que se conheceram, era como se Heishi carregasse
um segredo que ninguém conhecia. Do lado de fora, ouvia-se apenas o som das
ondas batendo contra o casco do navio. O luar pacato e tranquilo se espalhava
pelo mar infinito ao redor deles, brilhando sobre A-Ka e o solitário Percy.
Todos ao redor deles já estavam profundamente adormecidos e foi nesse momento
que Percy gentilmente envolveu a mão de A-Ka e a chacoalhou.
“Heishi é um grande amigo seu?”,
Percy perguntou em voz baixa.
“Um companheiro de luta,” A-Ka explicou
para Percy. “Nós lutamos juntos, ombro a ombro, e fugimos juntos da Cidade das
Máquinas”.
Percy anuiu. Suas mãos alcançaram o
interior da bolsa pendurada ao lado de seu corpo e A-Ka disse: "Deixa eu
ajudar. O que tá procurando?”.
A-Ka ajudou Percy a vasculhar a
grande bolsa. Ele encontrou uma pequena adaga, um pedaço de chocolate, um
filtro de água portátil e um transmissor. Havia também uma foto de Percy e
Feiluo: os dois, lado a lado, sob a luz do sol e uma paisagem desolada ao
fundo.
✶✶✶
Notas de tradução:
[1] Jingchuan: um termo
que se refere a um lago específico em Anhui, Lago Jing, mas como este é um
mundo fictício, podemos supor que Feitian estava apenas dando nomes aos
lugares, já que é uma cadeia de montanhas.
[2] Idades do Ouro, Prata, Bronze e
Ferro: as Quatro Idades/Eras do Homem - Ovídio e Hesíodo descreveram
este conceito em seus escritos, em que agruparam a história do homem em quatro
idades básicas: a Idade do Ouro, em que a humanidade coexistiu pacífica e
harmoniosamente entre si e a natureza; era primavera eterna e a terra rendeu os
frutos por conta própria, basicamente a utopia ocidental clássica; a Idade da
Prata, em que a primavera rompeu e tivemos as estações (além do inverno) e a
agricultura; a Idade do Bronze, em que os humanos pegaram em armas e se
voltaram uns contra os outros na guerra e, finalmente, a Idade do Ferro, onde
tudo que poderia dar errado, deu. Basicamente um tempo de massacre e destruição
em grande escala.
[3] Cidade Martha: provavelmente
nomeada assim em homenagem a Martha Chase, uma geneticista estadunidense que
trabalhou com Alfred Hershey para confirmar que o DNA, e não proteínas, era o
material genético de todas as criaturas vivas. As proteínas apenas
"expressam" o que o DNA codifica.
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Gente, amo de paixão essa novel. Vocês ainda pensam em continuar a tradução?
ResponderExcluirAcredito que não. Por motivos pessoais, a tradutora resolveu descontinuar o projeto, e não temos no momento, ninguém disponível para assumir essa tradução, então estamos considerando como dropada.
Excluir#Miss_Sw